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Limpos e sujos

A crise da banca privada chega ao remanso após dois anos de muito barulho e escassas vítimas. Todas as sociedades que emergiram de acelerações inflacionárias padeceram longa e dolorosamente com o ajuste do sistema bancário. Muita poupança familiar escoou pelo ralo na Alemanha de 1923, na França de 1928 e, mais recentemente, na Venezuela, México, Rússia e Albânia. No caso brasileiro, sobretudo depois que os juros internos subiram em flecha tão logo as finanças mexicanas sucumbiram à fuga do capital estrangeiro, em janeiro de 1995, algumas lições práticas foram absorvidas: adotou-se o seguro parcial dos depósitos, donos de ativos procuraram banqueiros mais fortes e o governo ficou mais esperto - para negociar e até para vigiar.

Mas nenhuma dessas novas virtudes explica a rapidez admirável com que o mercado absorveu a maré de inadimplência que abalou centenas de milhares de pessoas e empresas nos últimos dois anos. Parte da resposta está obviamente no volume esquálido do crédito, efeito secundário da própria inflação e do baixo padrão de consumo que imperava no país. Mas a chave para compreender essa demonstração de eficiência é o respeito que o brasileiro devota à teia de cadastros privados que escancara a vida dos patrícios. Duas prestações em atraso no crediário, dois aluguéis pendurados, ou então três mensalidades da casa própria em aberto, ou ainda uma única fatura de cartão de crédito empurrada com a barriga por 20 dias e, sobretudo, um papagaio descoberto por mais de dois meses, e lá vai tinta para sujar o nome do pecador em qualquer uma daquelas siglas que aterrorizam a cabeça dos apertados: Serasa, Spc, ou Telecheque.

Enquanto o governo é péssimo de cadastro, o mundo privado descobriu que pode ganhar dinheiro vendendo listas de sujos e de limpos. Negócio prestigioso, ganhador de prêmios em marketing, essa é uma versão informatizada da praça, costume milenar dos mercadores lusitanos que se reuniam no largo principal das aldeias para trocar suspeitas e sopesar reputações. Manifestações comerciais públicas são por isso legalmente conhecidas por "declaração à praça", assim como a quitação da pendência permite "limpar o nome na praça". Tudo isso soa natural numa sociedade que ainda cultiva a submissão como testemunho de lhaneza e adora exibições de autoritarismo. Mas a venda dessas fichas, que substitui o trabalho árduo de levantar cadastros nos bancos e no varejo, é ilegal, fere direitos individuais e mostra como estamos longe do Estado democrático.

Na superfície, a troca parece vantajosa: um corte indolor no império da lei permite negociar as informações que tornam o mercado eficaz e reforçam a saúde do sistema financeiro. Quem leva suas contas no capricho mal percebe o que se passa durante uma consulta de cheque. O vendedor faz duas mesuras e dá um sorriso enquanto o gerente investiga pelo telefone. É simples como qualquer porteiro de escritório recolhendo um documento de identidade antes de liberar a cancela. Com efeito, o mal tem aparência freqüentemente singela: exige-se prova de inocência para comprar dois maços de chicória no supermercado ou subir três andares para visitar o dentista, sem que vítimas ou algozes sequer percebam o ilícito - o que, de resto, não lhe atenua a gravidade.

Como é sempre neutra, a mesma tecnologia que permite ferir a lei ajudará a resolver boa parte do problema com a disseminação dos cartões de débito para pequenas compras, pois a vulgarização das transações eletrônicas tende a eliminar o terror do calote. Da mesma forma, a evolução normal do crédito numa economia estável deve recuperar a capacidade dos bancos para estimar limites à clientela sem recorrer ao depósito comum de anomalias financeiras - nesse caso catalogadas no Serasa. Tais correções podem vir antes que as pessoas tenham motivo para lamentar a violação de sua privacidade. Mas é preciso ter clareza, ao menos por um momento, de que o corriqueiro não legaliza o abuso. Se o Brasil cruzou ileso a crise bancária ao exercitar comércio de informações que a civilização e a lei declaram ser estritamente particulares, isso não quer dizer, primeiro, que esse tipo de violação deve ser legitimado, e muito menos que o assunto fica melhor quando tratado em voz baixa, como um segredo a esquecer.

Existe uma lição básica nisso tudo, que é a reafirmação da importância do conhecimento como base para resolver problemas. Todos os brasileiros pagam uma cota de sacrifício pela crise bancária. É um gasto indireto, expresso nos juros que o Tesouro pagará durante anos para rolar os papéis que financiaram o socorro aos bancos caídos. Mas essa quantia é realmente diminuta em comparação ao que pagam os contribuintes dos demais países que viveram espirais inflacionárias de natureza semelhante. No Brasil são menos de 3% do PIB, sem contar a catástrofe dos bancos estaduais, enquanto outros países latino-americanos chegaram a 10% e até muito mais.

Má notícia é a segunda parte, que rebaixa a origem dessas oportunas informações ao nível do tráfico. O mesmo princípio fundamental que garante o direito de ir e de vir protege o sigilo bancário do cidadão - e também o histórico de suas transações. Se as nações que respeitam os direitos individuais dizem que é preciso ordem escrita de um juiz para quebrar o sigilo bancário de qualquer suspeito, o mesmo procedimento deveria anteceder a transferência de um dado cadastral para fora do banco ou comércio de origem. Tanto assim que o Serasa, serviço organizado pelos bancos três décadas como câmara de compensação de cadastros, nasceu quase em segredo, tratado como assunto confidencial. A banalização do comércio de dados trouxe-lhe fama e respeitabilidade. Hoje, vende a preço módico uma assinatura por computador que estampa com minúcia a ficha completa de qualquer CGC ou CPF deste país. Muito fácil, transparente, mas não absolve a falha original. O brilhante triunfo sobre a crise da inadimplência expôs um risco que o estado de direito tem obrigatoriamente de amputar. E depressa.



  • "Exame" - 02/04/97