Primeira páginaÚltimas notíciasPolíticaEconomiaInternacionalEsportesTecnologiaCulturaWelcome    FLÁVIO PINHEIRO

O estigma da pobreza

A pobreza brasileira incomoda o governo, vaga pelo Parlamento, naufraa na Justiça e é pretexto para palavratório e demagogia. Ela é um rosário de martírios entrelaçados, o que aumenta a complexidade dos problemas e desarma simplificações baratas.

Tome-se a horda de crianças que trabalham, acabrunhante troféu das estatísticas da miséria e sinal alarmante da ausência de direitos civis no mundo do trabalho. Quanto mais pobres as crianças, mais elas trabalham. Certo? Errado. Há mais crianças no batente nos padrões suíços de Curitiba do que no miserê africano do Recife, como demonstram as pesquisas de Ricardo Paes de Barros, do Ipea. No mapa da distribuição de renda, está comprovado, cada ano de escolaridade representa mais 10% na renda.

Então por que não vale a pena, em Curitiba, esperar na sala de aula um futuro melhor? O economista José Márcio Camargo tem uma suspeita: esses 10% expressam um ganho médio, sinal de que o progresso é muito maior para o filho da classe média do que para o filho da lavadeira com a mesma escolaridade. Uma solução mais perene só virá com a diminuição do custo de permanência na escola. Brasília faz isso bonificando famílias pobres que mantêm a meninada nos colégios. Outra saída é discutir fórmulas que apressem o tempo na escola. A cada ano de repetência o aluno fica mais caro e fica mais propenso a se atirar no mercado de trabalho.

O quadro das crianças que trabalham revela que há outros entraves sociais que a falta de dinheiro por si só não explica. Parecem acessórios, intangíveis, mas não são. Impingem estigmas ao mundo da pobreza que, retirados, pelo menos ajudariam a desanuviar o ambiente.

Três pequenos exemplos dessa agenda de direitos civis:

1. Que seja obrigatório nas convenções de condomínio estabelecer que máquinas de lavar ou pianos sobem pelo elevador de carga e que patrões, empregados e visitantes dividem o mesmo elevador de gente.

2. Fica proibida a exigência de "boa aparência" em anúncios de emprego, já que se trata de um pedido para que o candidato à vaga não aparente ser preto.

3. Toda vez que for possível lavrar um flagrante, o autor da expressão "Sabe com quem está falando?" será condenado a prestar serviços comunitários em hospícios, onde, em geral, ninguém sabe com quem está falando.



  • "Veja" - 23/04/97