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A verdade amadorística

Estamos na era do cinegrafista amador. Atrás de uma janela escura, ele focaliza policiais batendo em inocentes; na praia, filma a queda de um jato; no quintal, registra coisas tão variadas quanto o rasante de um suposto disco voador ou um tombo do cunhado, que depois vai parar nas videocassetadas do Domingão do Faustão. Na tragédia da vida pública ou no pastelão da vida privada, é ele quem tudo vê.

Recentemente, surgiu até o cinegrafista amador profissional, que vende suas tomadas para as emissoras. Mas, mesmo remunerado, ele se apresenta como amador, pois daí vem o seu poder de persuasão. Suas cenas, escuras e trôpegas, transformam a precariedade em realismo, transmitindo a sensação de que ali está um recorte autêntico da realidade crua, sem truques. (Aliás, os programas sensacionalistas usam imagens com aspecto amadorístico exatamente para conseguir mais realismo.) Outras vezes, o amador dá ao público um acesso privilegiado à intimidade alheia. E, escancarada, qualquer intimidade é ridícula. A graça das videocassetadas vem justamente dessa exposição voluntária da intimidade familiar em desmoronamento.

O público está cada vez mais sedento de privacidades. No mercado de vídeos pornográficos, um dos setores mais festejados é aquele das fitas domésticas, em que pessoas comuns se mostram como se fossem atrizes e atores do gênero. O curioso é que elas não oferecem ali sua intimidade real, mas encenam uma privacidade pervertida ao gosto do freguês _ que saboreia tudo como se fosse verdade.

O cinegrafista amador, filmando pornografia ou pancadaria, exerce o fascínio obsceno de exibir o que deveria estar escondido. É sempre um delator, um dedo-duro a serviço do espetáculo totalitário. Não sendo profissional, passa a impressão de ser incapaz de manipular imagens. Apenas a verdade estaria ao seu alcance.

Antes, quando alguém queria ter crédito, usava o lamentável argumento da autoridade: "Você sabe com quem está falando?" Hoje é o oposto, o que também é lamentável: os telespectadores acreditam no amador exatamente por não saber quem ele é. Crêem que, não sendo ninguém, é confiável. Claro que isso tudo é uma perigosa ilusão. Imagens de amadores não substituem o jornalismo, e só têm validade quando acompanhadas de boas reportagens.

A ironia é que o próprio telejornalismo, transfigurado em show, contribui para essa ilusão. Dentro dele, exibir imagens chocantes para uma platéia em delírio ficou mais importante que explicar os fatos. Deu no que deu: hoje, qualquer curioso segurando uma câmara pode roubar a cena.



  • "Veja" - 23/04/97