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Muitos carros contra nenhuma cama

O que ocorreu em Brasília, naquele ponto de ônibus da Asa Sul, a poucos metros da pensão da dona Vera, nada tem a ver com índio. Nada tem a ver com os 500 anos de descaso dos patrões brancos do país, por mais que as ONGs, os missionários e os sertanistas queiram agarrar-se à oportunidade, nem com a demarcação da terras, ou com a Funai. É preciso fazer essa advertência, para não discutir o problema errado. O que houve foi o encontro trágico de duas realidades sociais extremas e imcompatíveis. De um lado, um grupo de rapazes com carros demais. De outro, um brasileiro com cama de menos.

O que aconteceu no ponto de ônibus tem tão pouco a ver com índio quanto as selvagerias praticadas pela Polícia Militar com os salários pagos aos soldados. Quando foram exibidos na TV os filmes das pancadarias, logo se levantou a questão dos salários dos soldados. Se baixo salário fosse motivo para a bárbarie, ninguém teria sossego neste país. Os espancadores e assassinos espreitariam em cada esquina, as ruas estariam coalhadas de cadáveres, e quem escapasse da morte teria o corpo permanentemente coberto de hematomas.

Pode até haver _ certamente há _ um problema com os salários dos PMs, mas ele não vem ao caso. Assim como há problema do índio, no Brasil, mas também não vem ao caso. Relevante, no presente episódio, é que ele se desenvolve numa noite em que só um dos jovens, Max Rogério Alves, nos seus tenros 19 anos, manipula três carros diferentes. Ele começa num Honda Civic, com o qual vai à casa da namorada. Depois, volta e troca o Honda por um Audi A4, que usa para ir encontrar os amigos, num bar do Centro Comercial Gilberto Salomão. Com a mãe e o padrasto fora da cidade, Max vai-se servindo dos carros da família como outros se serviriam de salgadinhos no aperitivo. Ainda destrocaria o Audi pelo Honda, até finalmente se fixar no Monza, com que consumaria a empreitada do ponto de ônibus. Dois de seus companheiros, Antônio Novely Cardoso de Vilanova e Eron Chaves de Oliveira, ambos também com 19 anos, usavam um Fiat Uno e um Gol, respectivamente, que deixaram estacionados à porta da casa de Max, quando resolveram todos se reunir no Monza.

A essa abundância de carros, opõe-se a malsinada sorte do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, na noite em que ficou sem cama. Era um índio, mas também podia ser um negro, um branco ou mesmo um suíço, embora seja difícil imaginar um suíço às voltas com tais dificuldades. Por algum motivo, Galdino não se recolheu à pensão da dona Vera. Em vez disso, esticou-se no banco do ponto de ônibus, a poucos metros dali, e, nesse momento, sofreu uma metamorfose. Virou um volume. Um pacote. Trata-se de uma peça de mobiliário urbano muito familiar aos brasileiros das grandes cidades. Uma forma enrolada num pano, estirada no chão, num banco, ou sobre um degrau, como um traste jogado fora. Tem gente dentro. Sabe-se que tem gente dentro. Mas é gente suja e desprezível, que se deixa ficar encolhida em suas dobras, desumanizada como um saco de batatas. Os rapazes do Monza, que zanzavam pela noite em busca de alguma emoção forte, decidiram atear fogo àquele pacote de gente.

Por que fizeram isso? A resposta é simples, e aqui mais uma vez reencontramos o caso da PM: porque pode. Os rapazes atearam fogo ao que pensaram ser um mendigo porque isso pode. Igualmente, os PMs bateram no povo da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, ou de Diadema, em São Paulo, porque pode.

Paralelamente à Constituição do país, e às vezes contra ela, existem subconstituições não escritas que regulam as relações internas dos diversos grupos sociais. Na subconstituição da PM, está estabelecido que bater pode. Não se trata de uma regra que se vá sair alardeando por aí. É algo mais sutil, mais recôndito e tácito, mas que finca raízes na mais poderosa das imcubadeiras _ a mente. A culpa também não é só da PM. Ela reflete uma indecisão da sociedade, ou de quem manda na sociedade, quanto a ser realmente recomendável abrir mão do recurso à pancada. E se eles, não só os bandidos, mas os miseráveis, os deserdados e os náufragos sociais em geral, perdem o medo e avançam, uma vez claramente estabelecido que não haverá mais pancada?

Na subconstituição do grupo que, naquela noite, se reuniu no Gilberto Salomão e depois saiu em busca de aventuras, está estabelecido que atear fogo a gente que dorme na rua pode. Não que eles quisessem matar o suposto mendigo. Possivelmente, não queriam. Mas para jovens como eles, com muitos carros, muito tempo disponível, muita ânsia de diversão e prazer e tratados com muita tolerância, gente estendida na rua pode oferecer o fecho que faltava a uma bela noitada. Não todos, certamente, pois há jovens ricos e com os mesmos confortos que não chegariam a tanto, mas, para uma parcela talvez não pequena deles, gente que dorme ao relento pode ser objeto de diversão tão grande como galo em briga de galo, ou tão emocionante como boi em farra de boi. No dia seguinte, conta-se a história e dão-se boas risadas, no Gilberto Salomão.



  • "Veja" - 30/04/97