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Prostitutas bonitas para a gente namorar

Pasárgada era um lugar muito especial, segundo o poeta. Muito especial, entre outras coisas, porque lá

Tem prostitutas bonitas
para a gente namorar.

O poeta é Manuel Bandeira, como se sabe. E sabe-se mais ainda que os versos acima fazem parte de seu poema mais conhecido. Vou-me embora pra Pasárgada, aquele que começa assim:

Vou-me embora pra Pasárgada
lá sou amigo do rei
Já tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei.

Por que falar de Manuel Bandeira a esta altura dos acontecimentos? Talvez fosse melhor esperar o ano que vem, quando se completam trinta anos de sua morte, ocorrida num dia 13 de outubro. Considerando a data de capa desta revista, estão se completando 28 anos, sete meses e um dia da morte do poeta - não é uma conta redonda, dessas que mereçam celebração. Nascido em 1886, Bandeira estaria agora completando 111 anos - o que tampouco nos ajuda, em matéria de conta redonda. Não há efeméride que justifique a invocação de seu nome. Tampouco Bandeira foi citado no último discurso do presidente da República, nem fez um filme sobre ele, qual seja: estamos órfãos de qualquer desses motivos que justificam o resgate de uma pessoa, ou coisa, da massa inerme dos esquecimentos, para explorá-la numa peça jornalística.

Mesmo assim, falemos de Manuel Bandeira. Ou melhor, não tenhamos a pretensão de falar de Manuel Bandeira. Sejamos modestos e terra-a-terra como ele, e falemos só de dois versos seus, aqueles com que começamos estas linhas. O poeta fala em "prostitutas bonitas". É a primeira magia que opera. Elas não são "lascivas", como talvez melhor conviesse a uma prostituta, nem "sensuais" ou "gostosas". Também não são "belas", como seria o caso se o poeta quisesse exaltar de maneira majestosa suas formas e linhas. Humilde e ternamente, as prostitutas são "bonitas".

"Sou poeta menor, perdoai", escreveu Bandeira, em outro poema. Longe dele o alto diapasão do anglo-americano T.S. Eliot, por exemplo, um dos grandes poetas deste século, autor de versos de alta densidade metafísica, nobremente enigmáticos:

O tempo passado e o tempo presente
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado
(tradução de Ivan Junqueira).

Bandeira é pão, pão, queijo, queijo. Também está longe da malignidade revestida de elegância de um Charles Baudelaire. Malignidade? Elegância? Isso é coisa de francês desocupado. Baudelaire tem um poema (Convite à Viagem) em que incita a amiga a ir com ele a uma terra de sonho. É a sua Pasárgada. Nessa terra, promete o poeta francês, tudo não é senão "ordem e beleza", e mais: "luxo, calma e voluptuosidade". Repare-se como o sonho do francês entediado e libertino difere do do brasileiro, ainda que igualmente entediado e libertino. Enquanto um começa por invocar a "ordem" e termina com a "voluptuosidade", passando pelo "luxo", o outro promete prostitutas bonitas para a gente namorar.

"Para a gente namorar". Essa é outra das magias operadas pelo poeta. As prostitutas não são, rudemente, para fornicar. Não são para saciar as urgências da carne. São para os vagares do namoro. Ou, então, o poeta está usando "namoro" como nome do ato sexual, o que emprenha de delicada fantasia algo que dito de outra forma, ainda mais que praticado com prostitutas, soaria com a brosquidão da satisfação fisiológica. Some-se a isso que, do ponto de vista do cidadão alçado à glória de ir morar em Pasárgada, não acontece ser recepcionado por ninfas, como aconteceu com os navegadores portugueses, nos Lusíadas, ao chegar à Ilha de Vênus, ou "ínsula divina", concebida pela imaginação de Camões como prêmio pela façanha de ter achado o caminho das Índias, e descanso das enormes fadigas da jornada heróica. Também não são anjos _ou anjas _ que aguardam o felizardo, ainda que Pasárgada soe como uma contrafação do Paraíso. E, ao contrário do que ocorre na Ilha de Caras, não são nem Luíza Brunet nem Xuxa que o escoltam. Simplesmente, são prostitutas.

Retomem-se os versos:

Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar.

Que revelam eles? Resposta: o Brasil. Num lugar bem abaixo da alta metafísica, distante da elegância e da nobreza, onde a ordem é apenas um dístico na bandeira, e voluptuosidade é palavra sonora demais para querer dizer "sem-vergonhice", nesse lugar é mais ou menos onde fica o Brasil. Manuel Bandeira é um poeta que nos faz redescobrir um velho Brasil _ simples, chão, safado, amável, manso, humilde, ingênuo e bom. Se é assim, pensando bem, são dispensáveis as efemérides, filmes em cartaz ou outros pretextos. Recorrer a Manuel Bandeira ajuda a recuperar o Brasil profundo que dorme embaixo do país corrupto e violento das últimas notícias, um país que, em vez das roubalheiras homéricas, das torturas e assassinatos por motivos torpes, docemente se consola com prostitutas bonitas.



  • "Veja" - 14/05/97