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Em defesa dos ronivons, com carinho

Coitado do Ronivon, é justo o que estão fazendo com ele? Só porque é do Acre? Porque tem esse nome? Só porque tem o rosto redondo como a Lua?

Ronivon Santiago, o leitor sabe, é um dos dois deputados que, em conversas gravadas, confessaram ter recebido dinheiro _ "200", segundo suas palavras _ para votar a favor da emenda da reeleição. O outro é João Maia. Pois contra os dois fechou-se um círculo de ferro. Pega, esfola. Num primeiro piscar de olhos, foram expulsos do partido a que eram filiados, o PFL. Num segundo, armou-se uma comissão que, num par de dias, decidiu que eles deviam ter seus mandatos cassados _ se é que não tinha decidido antes mesmo de se reunir. Por que tanta pressa? Esta é a questão. Para dar uma satisfação à sociedade, responde-se ao Congresso. Mais parece outra coisa. Que querem sumir logo com os ronivons, e enterrar o caso com eles.

Há uma enormidade em curso no Congresso Nacional, uma operação de... ia-se dizer acobertamento, mas deixe-se para lá, fixemo-nos num outro aspecto da questão, o raro fenômeno psicológico que ela revela. Talvez se trate de uma pirlimpsiquice, para empregar a palavra que Guimarães Rosa inventou para nomear fenômeno igualmente estranho num de seus contos. Se não, vejamos. Dois deputados confessam ter recebido propina. Seus pares reconhecem a autenticidade das auto-incriminações, tanto que não vacilam em puni-los. E, no entanto, ninguém, em nível oficial, dentro dos canais institucionais apropriados, pergunta quem lhes comprou os votos. Alguém confessa ter sido subornado _ e não se pergunta quem o subornou!

É um caso extremo de falta de curiosidade. É como alguém entrar na sala e dizer, "Sabe quem morreu?, e ninguém querer saber. Como uma filha comunicar ao pai, "Vou me casar", e o pai não perguntar com quem. Como um marido dizer à mulher, de supetão, "Amanhã vamos viajar", e ela não perguntar para onde. Como alguém, ao término da final de uma Copa do Mundo, comunicar que o jogo acabou, a um outro que não pôde acompanhá-lo, e este outro não perguntar quem ganhou. Só o pirlimpsiquice explica. Está-se dando por entendido, no caso dos ronivons, que o dinheiro caiu do céu, ou talvez emergiu das águas do Amazonas, trazido por Iara em seu regaço generoso, ou foi depositado na copa de uma árvore da floresta, por um uirapuru que o transportou no bico e depois anunciou sua chegada com o canto mavioso, ou quem sabe vazou, como baba, do caule farto dos seringais do Acre.

Os dois deputados apontaram os governadores do Acre e do Amazonas como as pessoas que lhes entregaram o dinheiro. Os deputados foram pegos e esfolados. Quanto aos governadores... O do Amazonas é um homem de bem, apressou-se em dizer o líder do PFL, Inocêncio Oliveira. Inocêncio, lembre-se, não é bem inocêncio. É o homem dos poços do Dnocs, escavados, com recursos públicos, em suas propriedades particulares. É do alto dessa inocência que se apresenta para santificar o outro como um varão de Plutarco.

O acobertamento _ vá lá a palavra _ pode gerar um escândalo mais grave do que o episódio que o originou. O presidente Richard Nixon não teve de renunciar, em 1974, por causa da invasão das instalações do Partido Democrata no edifício Watergate, em Washingtom _ em si, uma ninharia. Teve de fazê-lo por causa das mentiras que se seguiram, os depoimentos falsos, os documentos e fitas gravadas adulterados ou escondidos. No caso brasileiro, diante do que tem sido feito, ou não tem sido feito, depois da denúncia inicial, os ronivons ficam parecendo formiguinhas. São crianças. Mereceriam o tratamento de incapazes, ou semi-incapazes, como o reservado aos pródigos e silvícolas no Código Civil. Deveriam ir para a Febem.

No máximo, são trombadinhas. E trombadinha não merece compaixão? Chico Buarque fez uma música em que eles são tratados com carinho, aquela em que uma mãe conta a história de seu guri, que "chega suado e veloz do batente", trazendo presentes, "tanta corrente de ouro que haja pescoço pra enfiar", e bolsa "já com tudo dentro", e ainda "pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador". No caso dos ronivons, também se encantam com cimento, desde que provido por boas empreiteiras, gostam tanto de estrada que haja selva para rasgar, têm um fraco, em vez de gravador, por retransmissora de TV, e de vez em quando acertam uma bolada de "200". Ah, os nossos guris...

Na quarta-feira, os dois ronivons renunciaram a seus mandatos, antes de ser cassados. Assim não ficam com os direitos políticos suspensos e podem recandidatar-se nas próximas eleições. Ficam tranqüilos, sem motivo para, por vingança, falar mais do que já falaram. Ao contrário do rei Francisco I, da França, que ao final da batalha de Pavia disse que só não tinha perdido a honra, a honra só foi o que perderam. Dá para viver sem. Se eles não têm motivos para perguntar, ótimo. Dão-se as condições ideais para continuar um silêncio esplêndido, como nos vazios da selva, como no meio dos rios imensos.



  • "Veja" - 28/05/97