Primeira páginaÚltimas notíciasPolíticaEconomiaInternacionalEsportesTecnologiaCulturaWelcome    LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO

Otimismo ontem e hoje

Embora parte do comércio se queixe de que o Natal que passou foi pior que o anterior, estamos ainda numa fase alta de consumo. Num desses ciclos de muitas compras, abundância de importados, crédito facilitado e otimismo inconsequente. Ocorreram pelo menos quatro outros ciclos iguais a este na nossa História. Em 1808, com a chegada da corte portuguesa e a abertura dos portos, houve uma verdadeira festança consumista no Rio de Janeiro. Apertada pelo Bloqueio Continental que Napoleão montara contra ela, a Inglaterra carecia de produtos tropicais. Por isso, mandou para o Brasil navios cheios de produtos manufaturados. Cheios de qualquer coisa. Até trenós foram postos à venda nos cais cariocas na época do Natal.

Em meados do século, o fenômeno reproduziu-se. Extinto o tráfico negreiro, a balança comercial brasileira apresentou, a partir de 1850, um excedente comercial que acabou sendo torrado em importações. Pianos foram carregados para dentro dos sobrados, relógios cebolões foram enfiados nas algibeiras dos paletós. Papai Noel ainda não tinha aparecido por aqui, mas os comerciantes europeus do Rio de Janeiro tentavam ensinar aos brasileiros o hábitode dar e receber presentes nas festas de fim de ano.

Quando terminou o baile da Ilha Fiscal e o Império, em 1889, o Brasil entrava numa onda de crédito fácil que desembocou numa tumultuada especulação na bolsa (o Encilhamento). Antes do assanhamento arrefecer, houve um novo surto de importações. Mais experimentada com os mercados de consumidores europeus transplantados para a Austrália, África do Sul e Argélia, a indústria européia e americana lidava melhor com a demanda em ambiente tropical. Assim chegaram entre nós os pinheirinhos de Natal desmontáveis e os enfeites de papelão e de palha pintada de branco que imitavam a neve. Dessa vez, não vieram trenós.

O penúltimo ciclo consumista ainda está gravado na memória das gerações mais velhas. Acaba a II Guerra em 1945, começa o governo de Eurico Gaspar Dutra, e o Brasil atravessa uma situação favorável que resulta na entrada de automóveis, eletrolas e maças estrangeiras. Agora, vagamos de novo num movimento de importação de bens de consumo, iniciado no fim dos anos 80. Com o dólar estupidamente baixo, bastante gente preferiu passar um Natal estupidamente gelado em Nova York. Ao menos terá dado para ver de perto as bases do consumo natalino e os trenós escorregando na neve.

Uma história tão longa, repetindo-se a cada cinquenta anos, merece reflexão. Em cada um desses ciclos ocorreram mudanças, muitas delas importantes. Sempre houve governantes que atribuíram o início do ciclo consumista ao seu próprio talento político. Sempre houve gente pronta para gritar: "Desta vez vamos chegar lá". Passados alguns anos, prevaleceu o gosto amargo do atraso e a sensação de que o país havia perdido mais uma oportunidade de sair do atoleiro.

Não há um motivo único para explicar essa frustração. Entretanto, peneirando bem o cascalho da História, aparece uma pera que, sob formas e tamanhos diversos, rolava no nosso caminho em 1808, 1890, 1945 e ainda em 1996: o latifúndio improdutivo, a questão agrária. A opressão social que transforma largas partes do espaço brasileiro em território da infracidadania. Bem encaminhado, o imposto territorial rural, pensado por várias vezes nos últimos 200 anos, poderia resolver esse atraso. Talvez, o Brasil não desse certo assim logo em seguida. Mas estaria virada essa página. Falar-se-ia de outra coisa. E talvez o otimismo natalino durasse mais tempo do que nas outras vezes.



  • "Veja" - Ensaio, 8/01/97