O início da abertura
Geisel entregou
a seu sucessor um país
sem o AI-5 e com a imprensa livre
AJB 12/9/96 15h47
Do Rio de Janeiro
O presidente Ernesto Geisel
passou ao sucessor um país liberto de traços
essenciais da ditadura militar: o Ato
Institucional n° 5 (AI-5) revogado, a Lei de
Segurança Nacional abrandada e a imprensa sem
censura. Era a prometida "distensão lenta,
gradual e segura", consumada ao cabo do
mandato, mas não sem tormentas e embaraços. As
turbulências tiveram início no próprio momento
da posse, em 15 de março de 1974, presenciada
pelo general Augusto Pinochet, ditador do Chile.
Contra esse convidado, um símbolo da tirania no
continente, o deputado Francisco Pinto (MDB-BA)
proferiu discurso considerado ofensivo pelo
governo.
A ousadia do
parlamentar foi punida. Mas para tanto Geisel
não quis munir-se do AI-5, o raio ainda então
pendente sobre as cabeças de todas as
discordâncias. Preferiu a Lei de Segurança.
Francisco Pinto acabou condenado a seis meses de prisão.
O AI-5 só viria a
atingir o Congresso em julho de 1975. E caiu sobre
um senador da Arena, o partido do governo. Era
Wilson Campos, de Pernambuco, hoje deputado pelo
PSDB, acusado de cobrar comissões de
empresários que tentavam financiamentos do Banco
de Desenvolvimento de seu estado. Durante seis
meses, os senadores discutiram se concederiam licença
para processá-lo, afinal negada. Geisel
irritou-se com a rejeição e decidiu exemplar o
parlamentar, cassando-lhe o mandato.
Em janeiro de
1976, Geisel desafiou pela primeira vez o poder até
então absoluto dos órgãos de segurança. Foi
quando morreu em São Paulo o operário Manoel
Fiel Filho, nas mesmas sombrias dependências do
DOI-Codi onde em outubro do ano anterior fora
assassinado - sob versão oficial de suicídio -
o jornalista Vladimir Herzog. O presidente, em
ação rápida e surpreendente, demitiu o
comandante do II Exército, general Ednardo
DAvila Melo. Providência complementar
transferiu para guarnições de outros estados
alguns dos militares mais notoriamente ligados ao
aparato de repressão.
A caça à
oposição clandestina não se atenuara com a
distensão anunciada e nesse pouco mais de uma
ano e meio de governo só o Partido Comunista
Brasileiro (PCB) perdera 14 de seus principais
dirigentes, presos em 1974 e até hoje "desaparecidos".
A ofensiva contra o PCB prosseguia e, naquele janeiro
da morte de Fiel Filho, produzira a cassação do
mandato do deputado Marcelo Gato (SP), eleito na
legenda do MDB. Em março e abril, o Congresso
voltaria a ser mutilado. Dois deputados do MDB
gaúcho, Nadir Rossetti e Amauri Muller, criticaram
o governo e os militares, durante churrasco
eleitoral no interior do Rio Grande do Sul.
O ouvido grande
dos serviços de informação recolheu o protesto e
o AI-5 foi acionado. Rossetti e Muller perderam o
mandato. No desdobramento do incidente, Lisâneas
Maciel (MDB-RJ), que se solidarizou com os
parlamentares sulinos, também foi cassado.
Em agosto e
setembro, os "bolsões sinceros mas
radicais" da expressão um dia cunhada por
Geisel reagiram com terrorismo aos ensaios de
abertura. Bombas foram lançadas nas sedes da Ordem
dos Advogados do Brasil e da Associação
Brasileira de Imprensa, enquanto o bispo de Nova
Iguaçu (RJ), Dom Adriano Hipólito, identificado
com a ala dita progressista da Igreja, era seqüestrado,
espancado e abandonado, nu, na rua, com o corpo coberto
de tinta vermelha.
O governo
determinou apuração intransigente dos
atentados, mas aparentemente ainda não tinha
força para sufocar os porões mais
recalcitrantes do sistema, pois as
investigações de nada adiantaram.
Mas os modelos
político e econômico adotados pelos militares para
o país já passavam a ser questionados até
mesmo dentro do governo. Havia debate, embora o
sinal aberto para a discussão não fosse tão
verde: o ministro da Indústria e do Comércio,
empresário do ramo têxtil Severo Gomes, por
fazer críticas e propor alternativas durante uma
festa elegante em São Paulo, acabou afastado, em
fevereiro de 1977, antevéspera de um
desconcertante retrocesso, o corpo de medidas
alinhadas no amargo pacote de abril.
O governo havia
preparado um projeto de reforma do Judiciário que
exigia mudanças na Constituição, só
possíveis com a aprovação pelo voto de dois
terços dos parlamentares. O MDB fechou questão
contra a proposta, posição que tornava inócua
a submissão da Arena.
Geisel retomou os
instrumentos do autoritarimo e liquidou o problema
com um golpe de força: pôs o Congresso em
recesso, impôs o texto original da reforma,
ordenou que as eleições para governador
voltassem a ser indiretas, transformou em
definitiva a até então transitória Lei Falcão
(que castrara o debate eleitoral no rádio e na
TV) e criou os senadores biônicos - eleitos indiretamente
pelas assembléias legislativas. O fardo
indigesto provocou protestos nas ruas,
repressão, choques, bombas e prisões.
Na Câmara
reaberta, um deputado do MDB, Mário Tito, pronunciou
rápido discurso de crítica ao governo,
reprodução de um editorial do jornal comunista
clandestino Voz Operária. Acabou
sacrificado.
Em junho, o MDB,
aproveitando brecha da legislação eleitoral que
permitia aos partidos expor e debater seus
programas na TV, promoveu - por alguns de seus
principais líderes, como o senador Franco
Montoro e os deputados Ulisses Guimarães, Alencar
Furtado e Alceu Colares - um inventário crítico
do governo e do regime.
O programa obteve
grande audiência e larga repercussão. O chefe
do Serviço Nacional de Informações (SNI),
general João Figueiredo, ameaçou: "Vi e
não gostei". O ministro do Exército, general
Sílvio Frota, candidato dos radicais à
sucessão do presidente, quis cassar os quatro
parlamentares. Geisel optou pela cassação de
apenas um, Alencar Furtado, líder da bancada partidária
na Câmara.
O presidente
pactuara pela última vez com os bolsões
radicais. No dia 12 de outubro, provou que a
determinação de assegurar a abertura era
inabalável. Chamou a palácio o ministro do
Exército, escolhido pelos duros para próximo
general da vez no Planalto, e o demitiu
sumariamente. Foi uma tarde de tensão no país.
Houve mobilização de tropas leais ao presidente
para enfrentar uma resistência que não
aconteceu. O ministro despachado preferiu o pijama.
A distensão
prevalecia. O sucessor de Geisel, general João Figueiredo,
já teve de enfrentar uma candidatura alternativa
- ainda que militar, a do também general Euler
Bentes Monteiro - no Colégio Eleitoral.
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