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  E S P E C I A L
Ernesto
Geisel

1908-1996
 

O início da abertura

Geisel entregou a seu sucessor um país
sem o AI-5 e com a imprensa livre

AJB 12/9/96 15h47
Do Rio de Janeiro

O presidente Ernesto Geisel passou ao sucessor um país liberto de traços essenciais da ditadura militar: o Ato Institucional n° 5 (AI-5) revogado, a Lei de Segurança Nacional abrandada e a imprensa sem censura. Era a prometida "distensão lenta, gradual e segura", consumada ao cabo do mandato, mas não sem tormentas e embaraços. As turbulências tiveram início no próprio momento da posse, em 15 de março de 1974, presenciada pelo general Augusto Pinochet, ditador do Chile. Contra esse convidado, um símbolo da tirania no continente, o deputado Francisco Pinto (MDB-BA) proferiu discurso considerado ofensivo pelo governo.

A ousadia do parlamentar foi punida. Mas para tanto Geisel não quis munir-se do AI-5, o raio ainda então pendente sobre as cabeças de todas as discordâncias. Preferiu a Lei de Segurança. Francisco Pinto acabou condenado a seis meses de prisão.

O AI-5 só viria a atingir o Congresso em julho de 1975. E caiu sobre um senador da Arena, o partido do governo. Era Wilson Campos, de Pernambuco, hoje deputado pelo PSDB, acusado de cobrar comissões de empresários que tentavam financiamentos do Banco de Desenvolvimento de seu estado. Durante seis meses, os senadores discutiram se concederiam licença para processá-lo, afinal negada. Geisel irritou-se com a rejeição e decidiu exemplar o parlamentar, cassando-lhe o mandato.

Em janeiro de 1976, Geisel desafiou pela primeira vez o poder até então absoluto dos órgãos de segurança. Foi quando morreu em São Paulo o operário Manoel Fiel Filho, nas mesmas sombrias dependências do DOI-Codi onde em outubro do ano anterior fora assassinado - sob versão oficial de suicídio - o jornalista Vladimir Herzog. O presidente, em ação rápida e surpreendente, demitiu o comandante do II Exército, general Ednardo D’Avila Melo. Providência complementar transferiu para guarnições de outros estados alguns dos militares mais notoriamente ligados ao aparato de repressão.

A caça à oposição clandestina não se atenuara com a distensão anunciada e nesse pouco mais de uma ano e meio de governo só o Partido Comunista Brasileiro (PCB) perdera 14 de seus principais dirigentes, presos em 1974 e até hoje "desaparecidos". A ofensiva contra o PCB prosseguia e, naquele janeiro da morte de Fiel Filho, produzira a cassação do mandato do deputado Marcelo Gato (SP), eleito na legenda do MDB. Em março e abril, o Congresso voltaria a ser mutilado. Dois deputados do MDB gaúcho, Nadir Rossetti e Amauri Muller, criticaram o governo e os militares, durante churrasco eleitoral no interior do Rio Grande do Sul.

O ouvido grande dos serviços de informação recolheu o protesto e o AI-5 foi acionado. Rossetti e Muller perderam o mandato. No desdobramento do incidente, Lisâneas Maciel (MDB-RJ), que se solidarizou com os parlamentares sulinos, também foi cassado.

Em agosto e setembro, os "bolsões sinceros mas radicais" da expressão um dia cunhada por Geisel reagiram com terrorismo aos ensaios de abertura. Bombas foram lançadas nas sedes da Ordem dos Advogados do Brasil e da Associação Brasileira de Imprensa, enquanto o bispo de Nova Iguaçu (RJ), Dom Adriano Hipólito, identificado com a ala dita progressista da Igreja, era seqüestrado, espancado e abandonado, nu, na rua, com o corpo coberto de tinta vermelha.

O governo determinou apuração intransigente dos atentados, mas aparentemente ainda não tinha força para sufocar os porões mais recalcitrantes do sistema, pois as investigações de nada adiantaram.

Mas os modelos político e econômico adotados pelos militares para o país já passavam a ser questionados até mesmo dentro do governo. Havia debate, embora o sinal aberto para a discussão não fosse tão verde: o ministro da Indústria e do Comércio, empresário do ramo têxtil Severo Gomes, por fazer críticas e propor alternativas durante uma festa elegante em São Paulo, acabou afastado, em fevereiro de 1977, antevéspera de um desconcertante retrocesso, o corpo de medidas alinhadas no amargo pacote de abril.

O governo havia preparado um projeto de reforma do Judiciário que exigia mudanças na Constituição, só possíveis com a aprovação pelo voto de dois terços dos parlamentares. O MDB fechou questão contra a proposta, posição que tornava inócua a submissão da Arena.

Geisel retomou os instrumentos do autoritarimo e liquidou o problema com um golpe de força: pôs o Congresso em recesso, impôs o texto original da reforma, ordenou que as eleições para governador voltassem a ser indiretas, transformou em definitiva a até então transitória Lei Falcão (que castrara o debate eleitoral no rádio e na TV) e criou os senadores biônicos - eleitos indiretamente pelas assembléias legislativas. O fardo indigesto provocou protestos nas ruas, repressão, choques, bombas e prisões.

Na Câmara reaberta, um deputado do MDB, Mário Tito, pronunciou rápido discurso de crítica ao governo, reprodução de um editorial do jornal comunista clandestino Voz Operária. Acabou sacrificado.

Em junho, o MDB, aproveitando brecha da legislação eleitoral que permitia aos partidos expor e debater seus programas na TV, promoveu - por alguns de seus principais líderes, como o senador Franco Montoro e os deputados Ulisses Guimarães, Alencar Furtado e Alceu Colares - um inventário crítico do governo e do regime.

O programa obteve grande audiência e larga repercussão. O chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), general João Figueiredo, ameaçou: "Vi e não gostei". O ministro do Exército, general Sílvio Frota, candidato dos radicais à sucessão do presidente, quis cassar os quatro parlamentares. Geisel optou pela cassação de apenas um, Alencar Furtado, líder da bancada partidária na Câmara.

O presidente pactuara pela última vez com os bolsões radicais. No dia 12 de outubro, provou que a determinação de assegurar a abertura era inabalável. Chamou a palácio o ministro do Exército, escolhido pelos duros para próximo general da vez no Planalto, e o demitiu sumariamente. Foi uma tarde de tensão no país. Houve mobilização de tropas leais ao presidente para enfrentar uma resistência que não aconteceu. O ministro despachado preferiu o pijama.

A distensão prevalecia. O sucessor de Geisel, general João Figueiredo, já teve de enfrentar uma candidatura alternativa - ainda que militar, a do também general Euler Bentes Monteiro - no Colégio Eleitoral.