r e l a t o

Silêncios, medos e hesitações

IRINEU MACHADO

Especial para a Folha Online

Foi um massacre. Essa foi a primeira frase que me veio à cabeça ao observar as faces e corpos de cada um dos 19 sem-terra mortos, estirados no chão de duas salas vazias do prédio do Instituto Médico Legal de Marabá. Eram corpos em vestes simples, típicas de agricultores, só que sujas de sangue e de terra.

Eram nítidas as perfurações de bala em pontos como têmpora, testa, nuca, peito. Cortes no peito, nas pernas. Um dos corpos chocava mais. Tinha o crânio esmagado, aberto.

Era a tarde do dia 18 de abril de 1996, o dia seguinte ao confronto entre os sem-terra e os policiais militares da chamada "curva do S" da rodovia PA-150, em Eldorado do Carajás (PA).

Medo e silêncio, junto com um sentimento de revolta popular na maioria dos moradores, dominaram a atmosfera da região nos dias e horas subseqüentes ao confronto.

Uma multidão de curiosos se aglomerou em frente ao IML de Marabá para ver os corpos. Até crianças foram atraídas, provavelmente porque nunca tinham visto tanta gente morta ao mesmo tempo. Assustadas, se espremiam para tentar ver alguma coisa pela fresta da porta daqueles "porões", a palavra mais certa para descrever aquelas salas onde os mortos foram colocados.

Do lado de fora do IML, a aglomeração fechava a rua. As pessoas tinham medo de falar. Medo da polícia, medo de jornalistas, medo que algo que viessem a dizer pudesse transformá-las em pessoas "marcadas", mesmo que não existisse nenhum motivo para isso.

O mesmo medo teve o comerciante José Luiz de Melo, 69, dono de um bar no km 96 da rodovia PA-150, exatamente em frente ao local do conflito. Melo presenciou o momento em que o confronto começou. O "Pernambuco da Curva do S", como era conhecido na região, contou que viu tudo acontecer do bar onde estava. Viu a polícia se aproximar e disse que "choveu bala para todo o lado".

Temendo o pior, fechou o bar, que era também sua casa, e, com as cinco pessoas com quem estava, correu para o quarto e deitou no chão. Com a voz entristecida e ainda em dúvida sobre ter agido de maneira correta ou não, Melo revelou que alguns sem-terra tentaram se refugiar em sua casa durante o tiroteio. "Eles bateram na porta, mas eu não abri", disse. "Foram alguns minutos de tiros e depois um silêncio total."

O comerciante, segundo seu relato, viu vários corpos no chão e foi proibido depois pelos policiais de abrir a porta, sob a alegação de que eles iriam recolher os corpos.

No final da noite do dia 17, por volta de 22h30, Melo finalmente pôde abrir a porta e conseguiu ainda notar que vários dos manifestantes que, durante o tiroteio, tinham corrido mata adentro, começavam a voltar, alguns mancando, todos hesitantes.

O silêncio, o medo e a hesitação permaneceram na região por dias. Soldados do Exército foram espalhados por vários pontos da rodovia, nas proximidades do local do massacre. Até no enterro coletivo das vítimas, no município vizinho de Curionópolis, se percebia esse temor.

Entre os poucos que aceitavam falar com jornalistas, o discurso era de inconformismo. Diziam, em resumo, que não entendiam como ou por que alguém teria interesse em matar pessoas pobres.

Talvez não tenha havido mesmo interesse. É possível se concluir que o resultado trágico da operação em que a PM tinha a missão de desobstruir a estrada que estava bloqueada pelos sem-terra tenha sido conseqüência do despreparo dos homens.

Se, de um lado, estavam os "pobres" sem-terra _na sua maioria pessoas que chegaram à região em busca do sonho dourado de enriquecer em garimpos (Serra Pelada fica na mesma região) e frustradas ao perceber que a realidade era outra e o ouro não era fácil, vendo no movimento dos sem-terra a esperança de, pelo menos, conseguir terra para plantar_, de outro estavam soldados que poderiam até estar do outro lado do confronto, não fosse a farda.

Exemplo disso é o soldado PM Carlos Noleto de Araújo, 26, que se feriu no conflito. Ele só entrou na corporação da PM, em 1990, depois que foi demitido de seu emprego. Era um operário da construção civil. Foi para a PM porque tinha um filho para criar e se sentiu atraído pelo salário mensal fixo, que não era "ouro", era um salário baixo, mas era uma garantia mensal de ganho que ele não tinha nem quando trabalhava na construção civil.

"Estávamos nos aproximando, quando senti uma bala no braço. Quando vi sangue, corri desesperadamente, tropecei e caí. Dois minutos depois, estava num carro e fui levado para o hospital’’, contou Araújo, no leito do hospital.

Era uma operação de desobstrução da rodovia. Tive a chance de ouvir as palavras do sem-terra que disse ter sido o primeiro a ter sido baleado. Ouvi também um PM que disse que foi o primeiro atingido por um tiro no confronto. Ambos não sabiam direito o que tinha acontecido, nem como aquilo tinha acabado. Ambos disseram que não acreditavam que tanta gente tivesse morrido. Não acredito que nenhum massacre possa ser considerado por alguém como "necessário", mas até hoje carrego a impressão de que o que aconteceu em Eldorado do Carajás realmente não precisava ter acontecido. Foi um massacre inútil.

O jornalista Irineu Machado foi enviado especial a Marabá para cobrir o massacre; hoje ele trabalha na Agência Folha, em São Paulo.

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