Descrição de chapéu Humanos da Folha

'Depois de cobrir tragédias, virei jornalista', diz fotógrafa Marlene Bergamo

Em 30 anos na Folha, fotojornalista sentiu do cheiro da morte ao perfume da elite

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

O empresário Francisco Luiz Bergamo usava filme positivo, mais conhecido como slide, para fotografar e depois fazer as projeções para a família.

“Um dia ele [Bergamo] me deu a câmera e fiz uma foto dele com a minha mãe. Ao fazer a projeção, ele me abraçou e disse: ‘Olha, minha filhinha é fotógrafa!’ Aquilo me marcou muito, acho que ali virei fotógrafa. Eu tinha uns seis anos”, lembra Marlene Bergamo.

De camisa azul estampada, Marlene posa para foto segurando sua foto premiada, em que se vê vários corpor enfileirados em caixões de madeira
A fotógrafa Marlene Bergamo posa com foto de sua autoria para o Especial Folha 95 Anos. - Diego Padgurschi/Folhapress

A decisão definitiva pela fotografia veio quando ela terminou o colegial. Ganhou uma câmera Pentax da avó, com a qual foi fazer um curso na escola Focus, em São Paulo.

“Fiz também publicidade, que não tinha nada a ver comigo. Já detestava tudo o que se referia a publicidade”.

Nessa época, também fez frilas para a revista Playboy e trabalhou como assistente de estúdio. “Era moleca e estava procurando meu lugar ao sol. Mas ainda não sabia direito onde eu queria tomar sol”.

Encontrou o que procurava durante uma pauta, quando teve o atrevimento de pedir emprestada uma teleobjetiva ao fotógrafo que estava ao seu lado. Era Cesar Itiberê, então editor-assistente de fotografia da Folha.

“Como é cara de pau, guria! Como me pede uma lente? Você nem me conhece”, disse Itiberê a ela. Apesar da reação enfática, ele acabou emprestando.

Depois que ela devolveu a lente, Itiberê sugeriu que fosse à Folha. “Eles adoram gente cara de pau como você.” Marlene respondeu que mal sabia fotografar, mas ele reiterou o convite. “Não precisa saber fotografar, precisa ser cara de pau! Fotografia você aprende”.

Marlene colocou as poucas fotos que havia feito em uma pasta vermelha e foi ao jornal. Apresentou o portfólio para Homero Sergio, o outro editor-assistente, que lhe deu um conselho desanimador.

Disse que jogasse no lixo o portfólio, tão ruim que era, mas recomendou que ligasse para o jornal mais adiante porque poderiam surgir oportunidades. Ela ligava todo dia. Insistiu tanto até que foi chamada para uma pauta.

Estudante olha para a câmera enquanto policiais o seguram no chão com as mãos e joelho. Ele tem os olhos marejados e o rosto contraído.
Policiais agridem estudante durante ação no Centro Paula Souza, que estava ocupado em protesto de alunos em São Paulo - Marlene Bergamo/Folhapress

Assim, em 1986, Marlene Bergamo, hoje uma das maiores referências em fotojornalismo do país, entrou para a equipe da Folha.

Como Itiberê tinha previsto, a técnica veio depois: “Eu aprendia com todo mundo: Ed Viggiani, Adi Leite... Antônio Gaudério me ensinou a fotometrar [medir a luz]. Também aprendi com Jorge Araújo, Niels Andreas e outros. Era uma equipe muito boa”.

Marlene começou na Folha como fotógrafa da coluna da jornalista Joyce Pascowitch, na qual criou um estilo próprio. Colocava a câmera e o flash de cabeça para baixo, criando sombras inusitadas no rosto dos fotografados.

“Para minha sorte, o que mais interessava para a Folha nessa época nem era a técnica, em que eu era péssima, mas a criatividade, a invenção. O jornal não queria mais fotos caretas. Aprendi a fotografar sendo criativa e foi isso que garantiu minha vaga”.

Cansada do trabalho na coluna social, ela foi deslocada para o extinto Notícias Populares, também do Grupo Folha. “Fiquei cinco anos na madrugada cobrindo só homicídios, tragédias... Ali eu virei jornalista”, lembra.

Indignada com o alto índice de crimes no Jardim Ângela, na capital paulista, Marlene fundou a ONG Papel Jornal em meados da década de 1990.

“Me dei conta de que precisava parar de fotografar esses meninos mortos e ajudá-los a não morrer”, conta ela, que promoveu cursos de jornalismo na ONG por dez anos.

Depois do NP, Marlene voltou a ser parceira de Joyce na coluna —curiosamente, foi sua irmã Mônica Bergamo quem assumiu a seção da Ilustrada após a saída de Joyce.

A forma como se aproximava dos fotografados, tanto na coluna social quanto no noticiário policial, diferenciava Marlene de outros profissionais. “Eu queria sentir o cheiro da morte e o perfume da elite. Era uma questão existencial, não técnica. Eu precisava disso para entender o que eu estava fazendo e entender o mundo”, afirma.

Em seus mais de 30 anos de Folha, ela acumulou grandes coberturas e prêmios. O massacre no presídio do Carandiru, em 1992, onde 111 detentos foram executados pela Polícia Militar, teve especial relevância na carreira da fotógrafa.

“Me mandaram ao IML (Instituto Médico Legal) para tentar fotografar os corpos”, lembra. “Vesti uma roupa mais simples e a rasguei um pouco. Fiz um furo numa bolsa, encaixei uma câmera e entrei na fila de reconhecimento dos corpos. Entrei em um salão com um monte de caras mortos e fiz a foto”.

A imagem retratava o tamanho da tragédia. Ganhou as capas dos jornais do Grupo Folha, conquistou prêmios e correu o mundo.

Aos 54 anos, Marlene mantém o trabalho na Folha e projetos pessoais. “O que sou hoje se deve a esses 30 anos. Foi o jornalismo que me forjou e me tornou um ser crítico”.

Este texto faz parte do projeto Humanos da Folha, que apresenta perfis de profissionais que fizeram história no jornal.

Humanos da Folha

Conheça a história de profissionais que trabalharam no jornal

  1. Com 50 anos de carreira, Passarelli ganhou Prêmio Esso de Fotografia inédito para a Folha

  2. Fotógrafo se consagrou com imagem das Diretas-Já que foi capa da Folha

  3. 'Era elogiada por fotografar igual a homem', lembra Renata Falzoni

  4. Entre patos e formigas, obra de Ciça compõe fábula política do Brasil

  5. Fotógrafo da Folha se consagrou com imagem histórica do general Costa e Silva

  6. Morre o jornalista Celso Pinto, criador do jornal Valor Econômico, aos 67 anos

  7. Fotógrafo da Folha escondeu filme para retratar sessão de eletrochoque em manicômio

  8. Morto há uma década, Glauco unia humor ácido e carinho por personagens

  9. Editora da Ilustrada fez caderno 'da cultura e da frescura' nos anos 70

  10. História de êxito de Mauricio de Sousa começou como repórter policial na Folha

  11. Clóvis Rossi estaria indignado com a realidade brasileira, diz filha

  12. Me viam como 'patricinha', diz Joyce Pascowitch, que inovou o jeito de fazer coluna social nos anos 80

  13. Elvira Lobato revelou poço para teste de bomba atômica e império da Igreja Universal

  14. Fortuna se consagrou como 'o cartunista dos cartunistas'

  15. Com estrela de xerife, Caversan ocupou diversos cargos de edição na Folha

  16. Erika Palomino inovou na cobertura da noite paulistana

  17. Niels Andreas fotografou massacre do Carandiru e 50 anos de Israel

  18. Natali foi correspondente em Paris e uniu música e trabalho

  19. Dona Vicentina trabalhou como secretária na Folha durante mais de 5 décadas

  20. Fotógrafo se destacou nas coberturas do massacre de ianomâmis e da prisão de PC Farias

  21. Cláudio Abramo ajudou a renovar Folha nos anos turbulentos da ditadura

  22. Ilustrações de Mariza levaram o horror do cotidiano para as páginas do jornal

  23. Irreverente, Tarso de Castro criou o histórico Folhetim nos anos 1970

  24. Veemência das charges de Belmonte irritou até o regime nazista

  25. Boris assumiu Folha na fase mais tensa e conduziu travessia do jornal para o pós-ditadura

  26. Engenheiro ajudou Folha a se modernizar e atravessar transições tecnológicas

  27. Lenora de Barros promoveu renovação gráfica na Folha nos anos 1980

  28. Antônio Gaudério colecionou prêmios com fotos voltadas às questões sociais

  29. Bell Kranz levou temas considerados tabus para a Folhinha e o Folhateen

  30. Com poucos recursos, Olival Costa fundou Folha da Noite em 1921

  31. Sarcástico e culto, Bonalume cobriu ciência e conflitos pelo mundo por mais de 30 anos

  32. Coletti foi 'carrapato' de Jânio e teve prova de fogo na cobertura da visita de De Gaulle

  33. Apaixonado por cinema, seu Issa foi um precursor dos anúncios de filme no jornal

  34. João Bittar foi o editor que ajudou a levar fotógrafos da Folha para o mundo digital

  35. Pacato, Lourenço Diaféria publicou crônica que gerou crise com militares

  36. Moacyr Scliar fantasiava realidade em crônicas inspiradas em notícias da Folha

  37. Pioneiro na divulgação científica, José Reis incentivou presença de pesquisadores na mídia

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.