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Do outro lado do planeta Kane

Filme de Tim Burton mostra as ambições de Ed Wood, o desastroso diretor que buscava se igualar a Orson Welles

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[RESUMO] Tudo o que Ed Wood, considerado o pior cineasta de todos os tempos, queria era repetir o ídolo Orson Welles; na sua incapacidade para ver, Wood acreditava que estava rodando um "Cidadão Kane" atrás do outro. Em texto publicado em 1995, Otavio Frias Filho (1957-2018) mostra como diretores de talentos tão díspares se aproximam pela via da paródia

Quatro noites depois de estrear em São Paulo, o filme "Ed Wood" só passou, em determinado cinema, depois que três espectadores decidiram "produzir" a exibição e comprar os ingressos que faltavam —dois — para completar o quórum mínimo. Na semana seguinte, os distribuidores já cogitavam retirar o filme de cartaz. O leitor interessado terá de consultar o roteiro de hoje para saber se a decisão, que parecia iminente, foi tomada. Até a este ponto, de incrível exatidão ou coincidência, o filme de Tim Burton é fiel à sina do personagem-título, Edward D. Wood Jr., o cineasta dos anos 50 que foi eleito em 1980, dois anos depois de morrer alcoólatra, o pior diretor de cinema de todos os tempos.

O diretor do filme está sentado em sua cadeira no set de filmagem, ele tem um sorriso estranho, um pouco maníaco, enquanto o câmera o encara atrás do equipamento
Os atores Norman Alden e Johnny Deep em cena do filme "Ed Wood", de Tim Burton - Divulgação

"Ed Wood" é um desses fenômenos em torno dos quais os signos se agitam na efervescência de reiterar; em termos simbólicos, é um campo denso, de alta gravidade, capaz de atrair extremidades as mais remotas e isoladas, como aquela sessão de cinema, naquela noite, em São Paulo.

Mas entre o fracasso do diretor Ed Wood e o do filme agora feito sobre ele, no espaço entre essas duas bilheterias às moscas, está o mergulho assombroso que os roteiristas de Tim Burton empreenderam nas regiões mais pantanosas e horripilantes da arte, as da impotência criativa, para retirar de lá este filme, como uma sonda que tivesse descido até o inferno e voltasse cheia de esclarecimentos e iluminações.

Sempre supersticiosos, é de se imaginar as mandingas que atores e técnicos envolvidos na filmagem de "Ed Wood" terão usado para exorcizar esse filme mórbido, que anuncia seus créditos sobre lápides e chama a si a maldição do mais desastroso realizador de todos os tempos. Para piorar as coisas, tudo o que Ed Wood queria era repetir o ídolo Orson Welles; ele de fato acreditava, na sua incapacidade para ver, que estava rodando um "Cidadão Kane" atrás do outro, de modo que o sentimento de fracasso se torna ainda mais cruel, duro, irreversível, porque ressaltado no confronto com a obra-prima das obras-primas. Mas logo vemos que o filme não apenas contorna a maldição do personagem como é uma eficiente máquina de defesa montada contra ela.

É que o filme "Ed Wood" se torna uma paródia de "Kane" na proporção em que o personagem Ed Wood parodiava Orson Welles. As semelhanças estão em toda parte: Kane teve duas mulheres, Wood também; há um falso artista tanto em "Kane" (a cantora Susan Alexander) como em "Wood" (o próprio); o melhor amigo de ambos os protagonistas é um viciado sob tratamento (Jed Leland e Bela Lugosi); os dois filmes começam por narrativas em clima gótico e terminam da mesma forma, com a ideia de que há um ponto além do qual a câmera não pode ir; o Rosebud de "Kane" é o casaco de angorá em "Wood".

Apesar das longas "árias de melancolia", os dois têm urdimento cômico e literalmente se encontram, por assim dizer, quando Wood dá de cara com Welles, bebendo sozinho num bar, em "Wood". Mas a analogia mais importante é que tanto "Kane" como "Wood" são a refilmagem de um filme anterior.

Fotografia em preto e branco do cineasta Ed Wood. Ele encara a câmera de frente e tem olhos esbugalhados, além do rosto em meia luz
O cineasta Ed Wood (1924-1978). - Divulgação

Quem duvidar que reveja o começo de "Kane": um documentário convencional sobre a morte do magnata (semelhante, aliás, aos restos de filmagens que Ed Wood enfiava em seus filmes), é descartado pelo diretor insatisfeito, alter ego de Welles, oculto na sombra, que exige algo melhor e lança a pergunta, a propósito da última palavra dita pelo morto: "O que é Rosebud?" Só a partir daí o filme começa e ele se resume então à tentativa, ademais "frustrada", de refazer o cinejornal do início.

Algo parecido ocorre com o filme de Tim Burton: ele "corrige" Wood; entre relâmpagos, polvos e caixões, ele refaz os filmes que Wood pensava estar fazendo, toda a película "Ed Wood" podendo ser vista como um "remake" de "Glen or Glenda?" (1953), o primeiro —e autobiográfico— filme de Ed Wood.

É como resultado desse expediente artístico que "Ed Wood" consegue se aproximar tão perigosamente do planeta Kane, pelo seu lado mais inversivo e abismal, sem correr o risco de ser tragado mas, ao contrário, ingressando numa espécie de equilíbrio gravitacional com o grande astro. Em vez de "corrigir" Welles, Tim Burton se coloca ao lado dele, que corrige o cinejornal sobre Kane, corrigindo da mesma maneira o pior dos diretores, Wood. Antes e depois, melhor e pior, clássico e decadente, gênio e epígono não cessam de trocar de lugar, assim, por força da lei da paródia, que é a equivalência dentro da inversão, acrescentando a cada giro um sobre-sentido de ironia, compensação e álibi, ou seja, de defesa.

Assim como na religião, muitos serão chamados e poucos os eleitos. A cena do trem-fantasma, a que mais fortemente corrige "Glen or Glenda", expressa porém a salvação pessoal de Wood: ao revelar de modo adequado, no primeiro encontro amoroso, a mania de se vestir de mulher, e ao ser aceito nessa mania, ele desfaz o curto-circuito e assim a lâmina da guilhotina assombrada, suspensa por falta de luz sobre suas cabeças, poupa o casal, tal como a Esfinge dá passagem ao ser solucionado o enigma, impenetrável como Rosebud. Wood teve, enfim, o que Kane (nem Welles, parece) jamais encontrou, a saber, a aceitação cega, irracional, de uma mulher. Eis a compensação final, eis Wood devolvido da arte, que é não-vida, para a vida.

Não há dúvida de que Wood era um péssimo artista; resta saber se ele era um artista e, em caso afirmativo, de que tipo. Digamos que há dois tipos clássicos de incapacidade autoral. O primeiro, cujo modelo seria Flaubert, é o do autor que se sente aquém do seu objeto, que destina uma energia imensa e um tempo incansável à tentativa vã de atingi-lo, e que corporifica assim a frase de Buffon, compulsivamente citada pelo próprio Flaubert, segundo a qual "o gênio é uma longa paciência". O segundo é representado por Artaud, que estava além do próprio objeto, que apesar de irradiar uma superior vibração artística, influência marcante em todo o teatro moderno, não deixou qualquer obra, porque no seu caso o autor ultrapassava a autoria. É como se em Flaubert houvesse falta e em Artaud, excesso.

A posição de Wood, nesse quadro esquemático, não seria "aquém" nem "além", mas "trans" ou "pré": quando levam sua peça ou quando filma, ele aparece em êxtase, embriagado por um sentido e uma beleza que só ele e ninguém mais vê. Interioridade e exterioridade já estão previamente unificadas nele. É exatamente porque a atividade artística ocorre, por assim dizer, no seu coração, sem que seja necessário realizá-la objetivamente, que ela permanece ali, indevassável, onde consequentemente aborta para nós, não para ele. Wood é um não-artista, mas no sentido específico de que ele é um artista-para-si, que o tempo todo gera e sepulta um mesmo morto-vivo: a própria obra.

Seus discos-voadores, seus diálogos estúpidos, seus túmulos de papelão são apenas as sombras projetadas na parede de uma caverna mental; nessas sombras a intenção e o efeito estão colados indissoluvelmente, como a luz que não pode escapar de um buraco negro em astronomia. Ele erra por ansiedade, autoconfiança e preguiça de uma só vez. No ar puro da subjetividade de Ed Wood, no entanto, se nos fosse possível alcançá-lo, as imagens se desdobrariam ideais, perfeitas, acabadas. "Kane" é, portanto, o positivo e "Wood" o negativo de um mesmo filme, que permanece oculto entre ambos. Esse filme é o real, infilmável por definição.


Otavio Frias Filho foi jornalista, diretor editorial e diretor de redação da Folha.

Texto publicado originalmente na Folha em 2 de julho de 1995.

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