“Hoje tá fácil!” Essa era uma frase recorrente de Glauco na Redação da Folha, no fim dos anos 1980.
Quando ele a dizia, estava garantida a risada de quem abrisse o jornal do dia seguinte para olhar a charge da página 2. A frase sinalizava que o cartunista, que morreu há exatamente uma década, tinha encontrado logo de cara a piada certa depois de receber o briefing dos editores sobre as notícias relevantes do dia.
Em tempos sem email, Glauco e seus colegas Laerte e Angeli frequentavam o prédio da Folha, na alameda Barão de Limeira. Aqueles que formaram o coletivo Los 3 Amigos, nome tirado de uma comédia de sucesso com Steve Martin, criaram então a identidade do humor da Folha, com charges e quadrinhos.
Enquanto Laerte cutucava as feridas do comportamento com um olhar quase filosófico, Glauco expunha o ridículo político e social em um traço peculiar e piadas entre o safado e o ingênuo. O humor poderia ser ácido, mas ele deixava claro o carinho pelos personagens, uma certa compaixão por aqueles que inseria em situações cômicas, degradantes.
Se Angeli era o criador de adoráveis tipinhos urbanos que os leitores reconheciam na cena paulistana, Glauco também foi mestre em moldar personagens cativantes. E nenhum outro deles foi tão carismático quanto Geraldão.
Garrafa equilibrada na cabeça, cigarro no canto da boca, seringa espetada no narigão e bebidas e sanduíches nas mãos. Muitas mãos porque era desenhado com múltiplos bracinhos para dar a sensação de movimento frenético de quem leva a vida em exageros.
Solteirão beirando os 30 anos, virgem e morando com a mãe, Geraldão pouco fazia além de tomar todas e agarrar bonecas infláveis. Ele teve duas —a primeira, que batizou de Sonia Braga, acabou trocada por outra, Sharon Stone.
O caminho para o nascimento de Geraldão foi aberto pelo jornalista José Hamilton Ribeiro, que em 1976 comandava o Diário da Manhã, em Ribeirão Preto, no interior paulista.
Nascido em 10 de março de 1957 em Jandaia do Sul, no Paraná, Glauco Vilas Boas foi para o interior paulista estudar engenharia. Sem sucesso no vestibular, conseguiu publicar seus primeiros desenhos. “O traço ainda era tosco, mas batia fundo. Dava já para ver que tinha talento”, disse Ribeiro sobre a contratação.
O grande empurrão para Glauco foi o prêmio no Salão de Humor de Piracicaba, em 1977, dado por um júri notável, que tinha Millôr Fernandes, Jaguar, Henfil e Angeli. Também premiado em Piracicaba, dois anos antes, Angeli selecionava quadrinhos para uma página de humor na Folha, chamada Vira Lata. Glauco estreou no jornal naquele espaço.
Depois de anos criando charges políticas, as tiras diárias começaram a sair na Ilustrada em 1983. Além de Geraldão, os leitores conheceram uma turma de tipos sem freio, em desenhos de traço nervoso e humor escrachado.
O Casal Neuras surgiu da experiência de amigos e do primeiro casamento de Glauco. No lar dos Neuras, ela cansa de ser submissa e parte para a farra fora de casa. Ele posa de machão, mas morre de ciúmes e tem reações patéticas.
Já Dona Marta ataca todos os homens que cruzam o seu caminho, sem sucesso.
Além de outros tipos, ele criou o Geraldinho especialmente para a Folhinha, suplemento infantil da Folha. É a versão criança do Geraldão, viciado em TV, Q-Suco e sorvete.
Essa galeria de personagens migrou para revistas na segunda metade dos anos 1980. Angeli lançou Chiclete com Banana, publicação mensal que abrigou como convidados Glauco e Laerte. Na revista, surgiram as histórias de Los 3 Amigos, escritas a seis mãos. Anos depois, a oito mãos, com a ajuda de Adão Iturrusgarai. Glauco teve sua revista própria, Geraldão, que foi publicada entre 1987 e 1990.
Ele também levou suas ideias engraçadas para a Globo, integrando o time de roteiristas dos programas “TV Pirata” e “TV Colosso.”
De volta ao Glauco na Folha nos anos 1980. Quando arriscava muitas tentativas em busca da charge ideal, num dia “difícil”, ele enfiava os rascunhos numa gaveta. “Melhor guardar. Depois que eu morrer famoso, isso vai valer uma nota!”, brincava.
Glauco morreu famoso, mas muito cedo, dois dias depois de completar 53 anos. Adepto da doutrina do Santo Daime, ele fundou a igreja Céu de Maria, que abrigava encontros de seguidores no sítio do cartunista em Osasco, na Grande São Paulo.
Ali, na madrugada de 12 de março de 2010, ele e o filho Raoni, de 25 anos, foram mortos a tiros por um frequentador da Céu de Maria, depois diagnosticado como esquizofrênico.
Embora admirado por gerações, é difícil encontrar alguém que possa ser apontado como um claro seguidor de Glauco. “Em relação ao traço, certamente não tem quem faça algo parecido”, diz Beatriz Galvão, viúva do artista. “E o tipo de humor era muito especial. Ele pegava pesado, mas não era agressivo, tinha uma coisa infantil.”
Além das reedições de livros com seus trabalhos, há um projeto que ajuda a preservar o legado do cartunista. Beatriz Galvão abriu recentemente a loja virtual Glauco Cartoon, que vende camisetas, moletons e itens colecionáveis com estampas dos personagens do marido.
O site criado por ela, glaucocartoon.com.br, abriga um espaço para disponibilizar itens com estampas de desenhistas convidados, amigos de Glauco. Como não poderia ser diferente, os dois primeiros são Angeli e Laerte.
Este texto faz parte do projeto Humanos da Folha, que apresenta perfis de profissionais que fizeram história no jornal.
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