Descrição de chapéu África

'Morte de Zumbi aponta para a vida', escreveu Lélia Gonzalez na Folha em 1981

Antropóloga e escritora publicou texto em caderno dedicado ao Dia da Consciência Negra

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São Paulo

"A gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha etc., mas tornar-se negra é uma conquista", afirmou a filósofa, historiadora e antropóloga Lélia Almeida Gonzaléz (1935-1994), uma das mais importantes ativistas da história do movimento negro brasileiro, em artigo publicado em 1988.

Lélia Gonzalez, feminista negra, uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU)
A antropóloga, filósofa e historiadora Lélia Gonzalez, feminista e militante antirracista, foi uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU) - Reprodução

A professora de cultura brasileira na PUC do Rio teve atuação essencial na fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, e na criação do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN-RJ), entre outras organizações políticas engajadas na luta antirracista.

Na academia, Gonzalez foi percursora do feminismo interseccional no Brasil. Sua produção intelectual, assim, busca refletir sobre a condição da mulher negra na sociedade, tomando-a como central para sua reflexão. Por isso, quando fala em "tornar-se negra" dialoga com Simone de Beauvoir, mas o faz a partir de uma perspectiva que escapa à filósofa francesa: a racial.

Para ela, o feminismo europeu não considera "outro tipo de discriminação, tão grave como aquela sofrida pela mulher [branca]: a de caráter racial". É esta combinação do racismo com o machismo, vivenciada pelas mulher negras, o ponto central do pensamento de Gonzalez.

Em 1981, o suplemento cultural da Folha, o Folhetim, publicou uma edição dedicada à data de 20 de novembro, celebrada desde os anos 1960 pelos movimentos negros como Dia da Consciência Negra.

Nessa edição, Gonzalez publicou o artigo "Mulher negra, essa quilombola", em que é possível conhecer os traços fundamentais de seu pensamento e obra. O texto é republicado agora, integralmente, como parte do projeto Folha, 100, que celebra a história centenária do jornal.

*

De repente, o grande público toma conhecimento da importância do 20 de novembro para nós, negros deste país. Justamente porque a morte de Zumbi transfigura-se no ato que, por excelência, aponta para a vida. Ao morrer, Zumbi continuou vivo, permanecendo na consciência de seu povo e também na dos opressores desse povo.

Palmares, sociedade alternativa

No primeiro caso, transformou-se no símbolo da resistência e da luta por uma sociedade alternativa, onde negros, índios e brancos fossem considerados a partir daquilo que os torna iguais: sua humanidade, e organizados a partir dos critérios democráticos com a justa distribuição dos frutos de seu trabalho. E não há dúvida de que Palmares foi a primeira tentativa de criação dessa sociedade igualitária, onde existiu uma efetiva democracia racial.

Por tal se pode compreender porque os movimentos negros do período pós-abolição tiveram nela e em Zumbi a garantia histórica e simbólica de suas reivindicações. E não foi por outra razão que, em 1978, em memorável assembleia realizada em Salvador, o Movimento Negro Unificado estabeleceu o 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra.

No segundo caso, ele personificou a ameaça de perda de privilégios de raça e classe, sempre presente e perigosa para o dominador. Não é por acaso que Zumbi se encontra no imaginário popular nordestino caracterizado como um malvado demônio noturno que rouba crianças mal comportadas (o que, aliás, não deixa de ser uma bandeira).

O papel da mulher negra

Mas cabe aqui uma pergunta: onde é que a mulher negra entra nesse papo? Será que vamos falar de Dandara ou de Luísa Mahim?

Não, especialmente. Mas enquanto quilombolas, não há dúvida. É claro que, aqui, o termo está sendo tomado num sentido mais amplo, metafórico mesmo. A mulher negra tem sido uma quilombola exatamente porque, graças a ela, podemos dizer que a identidade cultural brasileira passa necessariamente pelo negro. E, numa primeira aproximação, podemos afirmar que ela só tem a ver com os dois tipos de permanência de Zumbi na cabeça da moçada. Tentemos explicar.

Enquanto escrava, ela foi dirigida para diferentes tipos de trabalho, que iam desde aquele no campo (plantação de cana, de café etc) até o trabalho doméstico.

No primeiro caso, enquanto escrava do eito, ela estimulou os companheiro para a revolta, a fuga e a formação de quilombos. Enquanto habitante destes últimos, ela participou, como em Palmares, das lutas contra as expedições militares destinadas à sua destruição, nunca deixando de educar seus filhos dentro do espírito anti-escravista, anticolonialista, antirracista.

Em termos de trabalho doméstico, vamos encontrá-la na função de mucama e/ou ama de leite. Nessas circunstâncias, ela mantinha um contato direto com seus senhores, assim como com tudo aquilo que tal contato implicava (desde violência sexual e os castigos, até a reprodução da ideologia senhorial).

Mas foi justamente a partir daí que ela fez a cabeça do dominador, sobretudo a exercer a função materna enquanto "mãe preta".

Resistência passiva

De acordo com opiniões meio apressadas, a "mãe preta" representaria o tipo acabado da negra acomodada, que passivamente aceitou a escravidão e a ela correspondeu de maneira mais cristã, oferecendo a face ao inimigo.

Acho que não dá para aceitar isso como verdadeiro, sobretudo quando se leva em conta que sua realidade foi vivida com muita dor e humilhação. E justamente por isso, não se pode deixar de considerar que a "mãe preta", também desenvolveu as suas formas de resistência: a resistência passiva, cuja dinâmica deve ser encarada com mais profundidade.

Papo vai, papo vem; ela foi criando uma espécie de "romance familiar", cuja importância foi fundamental na formação dos valores e crenças do nosso povo. Conscientemente ou não, ela passou para o brasileiro branco as categorias das culturas negro-africanas de que era representante.

Foi por aí que ela africanizou o português falado no Brasil (transformando-o em "pretuguês") e, consequentemente, a cultura brasileira. E, no caso nordestino, foi contando história pro "sinhozinho" que ela transou o Zumbi enquanto figura ameaçadora de crianças malcriadas. Pois é...

A situação da mulher negra hoje não é muito diferente de seu passado de escravidão. Enquanto negra e mulher, é objeto de dois tipos de desigualdades que fazem dela o setor mais inferiorizado da sociedade brasileira. Enquanto trabalhadora, continua a desempenhar as funções modernizadas da escrava do eito, da mesma mucama, da escrava de ganho.

Enquanto mãe e companheira, continua aí, sozinha, a batalhar o sustento dos filhos, enquanto o companheiro, objeto de violência policial, está morto ou na prisão, ou então desempregado e vítima do alcoolismo. Mas seu espírito de quilombola não a deixa sossobrar.

Marli Mulher

Acordar cedo, pegar água na bica, deixar as coisas adiantadas para que a filha mais velha termine, trabalhar nas casas de madames ou como servente do supermercado. Voltar à noite, lavar umas "roupinhas", acordar mais cedo no dia seguinte para enfrentar a fila no posto de saúde, porque uma das crianças está doente, etc. etc... Nada disso a faz esmorecer.

Em matéria de dupla jornada, estratégias de sobrevivência e coisas que tais, ela é escoladíssima. E, muitas vezes, pensamos em Marli Soares, ela sempre dá um jeito de ir ao samba exercer sua ludicidade e com todo o direito. Curte um Carnaval como ninguém e adora desfilar na avenida. E não deixa de ir ao terreiro e ao centro porque põe fé nos orixás e nos guias. Pode ter medo de barata, mas de polícia não. E se isto se acrescenta ao mínimo de consciência política, a gente sabe no que vai dar.

Por aí dá para entender porque o primeiro passo que a mulher negra dá, em termos de conscientização, tem a ver com a luta contra o racismo, posto que não só ela, mas seus filhos, irmãos, parentes, companheiro, amigos e conhecidos dele são vítimas. Depois é que ela "saca" o lance do sexismo.

Sua participação nos movimentos negros foi e tem sido cada vez mais intensa, de maior significação. Quando a gente anda por este Brasil afora e conhece os movimentos negros regionais, uma coisa se evidencia com maior clareza: a presença crescente, e muitas vezes majoritária do mulherio. E, ainda mais, dá pra perceber que as lideranças desses movimentos, em muitos casos, é dela, mulher negra.

O que não é de espantar pois, enquanto setor mais explorado e oprimido, e consciente disso, ela vê muitas coisas do sistema não só na sua estratégia de exploração dos trabalhadores, mas enquanto organização racista e sexista.

Consequentemente, sua luta se dá em três frentes, e quanto mais desenvolve sua prática em termos de movimento, mais sua lucidez e sua sensibilidade se enriquecem. De repente, ela acaba tendo um jogo de cintura muito maior do que acreditava possuir.

Herdeira dos quilombolas

Nesse sentido, ela é a grande herdeira dos quilombolas, como Dandara e Luída Mahim, de Tia Ciata e Mãe Senhora; mas sobremodo da grande massa anônima que na casa grande ou na senzala, no eito ou nos quilombos, no candomblé ou na umbanda, nos ranchos ou nos afoxés, garantiu a sobrevivência de todo um povo, enquanto raça e cultura.

Aqui nas Alagoas, um grupo de mulheres negras de diferentes estados, representantes ou não de movimentos negros, preparou-se para subir a Serra da Barriga, onde se situava a capital de Palmares, o Mocambo do Macaco. O projeto do Memorial Zumbi, do qual fazemos parte, realizou um ato solene, uma homenagem a Zumbi, no 20 de novembro.

Enquanto isso, no resto do país, uma série de eventos estavam acontecendo neste Dia Nacional da Consciência Negra, promovidos pelos movimentos negros. E lá, no alto da Serra, durante a solenidade, ficamos pensando naquelas palmarinas, que preferiram matar os próprios filhos e se suicidarem em seguida, para não se deixarem escravizar.

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