'Poder militar é a única força organizada no Brasil', disse Prestes à Folha em 1986

Líder comunista foi além dos temas políticos e contou ao jornal sobre sua vida pessoal

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São Paulo

A eleição de Jair Bolsonaro (sem partido) em 2018 teve como consequência uma expansão da presença de militares em cargos do governo.

Levantamento da Folha publicado em julho de 2020 mostrou que, em apenas um ano e meio de gestão, Bolsonaro expandiu o número de integrantes das três Forças Armadas em cargos comissionados em 33%. Eram 2.558, em ao menos 18 órgãos, entre eles Saúde, Economia, Família e Minas e Energia.

Os apoiadores e o grupo político do presidente expuseram em diversos momentos sua visão radical sobre o papel das Forças Armadas em relação ao estado brasileiro.

A atuação militar na república, mesmo após a redemocratização, preocupava uma das figuras históricas da esquerda do Brasil. Em entrevista à Folha em maio de 1986, Luís Carlos Prestes (1898-1990) afirmou não haver "Nova República" com a abertura política e disse que o poder militar continuava inalterado após a ditadura.

Luís Carlos Prestes em foto de maio de 1986
Luís Carlos Prestes em foto de maio de 1986 - Rogério Carneiro/Folhapress

"As Forças Armadas, em qualquer democracia burguesa, são um instrumento do Estado. Aqui no Brasil é o contrário. Elas tutelam os poderes do Estado. O poder militar é a única força organizada no Brasil", afirmou.

Figura influente desde sua participação no tenentismo (movimento de jovens oficiais críticos às oligarquias que comandavam o país), nos anos 1920, o militar nascido em Porto Alegre ganhou mais notoriedade ao comandar a Coluna Prestes, legião que enveredou pelos confins do país tentando despertar a população para a luta política.

O responsável pelo texto que ocupou uma página da editoria de Política (hoje Poder) foi João Batista Natali. Aos 72 anos, ele conta que se aproximou de membros do PCB (Partido Comunista Brasileiro) que estavam exilados na França quando foi correspondente da Folha em Paris. Essas conexões facilitaram o contato e a realização da entrevista.

"Apesar de todo o poder que teve dentro da esquerda brasileira, Prestes sempre foi uma pessoa extremamente humilde. Falava baixinho, quase cochichava as coisas para você como se estivesse em uma conversa íntima", lembra o jornalista.

Natali recorda-se de ter embarcado logo cedo em São Paulo para realizar a entrevista, que ocorreu no Rio de Janeiro. “O bairro do prédio onde ele vivia era bom, mas o prédio, meia-boca. Ele próprio abriu a porta, me convidou para sentar, e a dona Maria [sua segunda esposa] trouxe um cafezinho”. Era um apartamento emprestado pelo amigo Oscar Niemeyer.

Durante a conversa, o ex-senador (foi empossado em 1946, mas teve o mandato cassado) contou como se via isolado na esquerda brasileira.

Fiel à União Soviética, Prestes chegou a relativizar o desastre nuclear de Tchernóbil, ocorrido na Ucrânia em 26 de abril, uma semana antes da entrevista. Chamou de "estardalhaço malicioso" a forma como o incidente era retratado no Brasil. Àquela altura, ainda eram poucas as informações divulgadas sobre o desastre.

Para Natali, o ponto alto da entrevista aconteceu quando falaram sobre a biografia de Olga Benário (primeira esposa do entrevistado, entregue por Getúlio Vargas aos campos de extermínio nazista), escrita por Fernando Morais. No livro, Morais conta que, antes de se casar com ela, Prestes não havia tido relações sexuais com nenhuma outra mulher.

"Ele riu. Disse que o Fernando Morais exagerava, mas não desmentiu. Depois ainda deu razão, ao dizer que o pai dele morreu quando ele tinha 10 anos e que ele se tornou chefe de família. Conta isso para dizer que tinha outras coisas para pensar, que não podia pensar na sua sexualidade", lembra Natali.

Prestes também discorreu sobre assuntos com música e cinema. Disse não compreender o rock ("músicas modernas e barulhentas norte-americanas") e afirmou não ter comprado um videocassete por ser "muito caro".

Confira a seguir a íntegra da entrevista com Prestes. Também é possível conferir o texto no Acervo Digital da Folha.

Luís Carlos Prestes, 88, com seu currículo de controvertida militância política iniciado com o tenentismo, em 1922, deu provas na última quinta-feira [1º de maio] que ainda possuía combustível e motivação para permanecer em evidência.

Conseguiu fazer um curto discurso pelo Dia do Trabalho na Quinta da Boa Vista, zona norte do Rio, num palanque que lhe fora vetado pela CGT (Central Geral dos Trabalhadores), hoje integrada por seus ex-companheiros de Partido Comunista Brasileiro. Veto que, ironicamente, foi apoiado pela CUT, central sindical que Prestes, em manifesto distribuído por seus poucos e fiéis correligionários, elogiava de maneira inequívoca.

Seis horas antes do incidente, o ex-senador (cassado juntamente com o registro de seu partido, em 1947) dizia à Folha estar disposto a repetir o mesmo roteiro do comício pelas Diretas na avenida Presidente Vargas, em 1984, quando acabou discursando, apesar do veto explicitamente oposto do governador do Rio, Leonel Brizola. A diferença entre os dois atos públicos é que desta vez cortaram o microfone.

"Foi um episódio de luta de classes, que não me deixou pessoalmente magoado", disse ele anteontem [sexta-feira, 2 de maio]. Pouquíssimas de suas decisões públicas são objeto de arrependimento. Ele ainda hoje acredita ter agido corretamente ao apoiar Vargas em 1945, ainda que o chefe do Estado Novo tivesse entregue anos antes sua primeira mulher, a alemã Olga Benário, aos campos de extermínio nazista.

De um dinamismo quase irrequieto, sem a mínima sequela aparente da cirurgia que sofreu em janeiro para a extração de dois tumores benignos do abdômen, ele afirma, com um humor quase irônico, não se importar com seu atual isolamento político.

Foi excluído do PCB, em 1979, depois de exercer por 37 anos a secretaria-geral com um estilo que os atuais dirigentes do partido dizem ter sido personalista e autoritário. Aproximou-se do PDT e do PT, com eles compartilhando as críticas —de aceitação minoritária— ao Plano Cruzado do presidente Sarney.

Diz acreditar que os militares permanecem no comando da vida pública brasileira, inexistindo, por isso mesmo, qualquer "Nova República". E, por fim, mantém inalterada sua antiga idolatria pela União Soviética, numa postura que pouquíssimos comunistas continuam a ter com idêntico vigor.

Prestes mora num apartamento modestamente mobiliado na Gávea, zona sul carioca, onde, trajando calças cinzas e uma camisa social branca, mangas curtas e colarinho aberto, discorreu das 10h às 11h15 dessa quinta-feira sobre política e sua vida pessoal, campos que percorre com idêntico desprendimento e invejável fluência.

Senador, o senhor criticou de forma categórica as medidas econômicas que o governo decretou em fins de fevereiro [Plano Cruzado, que, entre outras medidas, alterou a moeda, congelou os preços e liberou um abono salarial], argumentando que elas resultavam num confisco salarial. O senhor se mantém nessa posição?

Mantenho, e na época eu disse mais: que se tratava de um ato político com o objetivo de ludibriar a classe operária. Em dezembro, o pacote anterior, eminentemente inflacionário, previa uma sobretaxa de imposto de renda que deveria produzir alguns trilhões de cruzeiros em recursos. Ora, os empresários não diminuíram seus lucros, e quem acabou pagando essa sobretaxa foi o consumidor.

Os preços subiram em janeiro e fevereiro aceleradamente, sendo então congelados. E enquanto isso o salário mínimo, conforme observou o governador Brizola, passava a ser, em termos reais, o mais baixo desde 1941.

Mas é inegável que houve, nesses últimos dois meses, um reaquecimento do consumo. O fenômeno não contradiz a tese de confisco salarial?

Não. O que ocorre é a falta de confiança em que os preços permaneçam congelados, consumindo-se, assim, mais produtos industriais de certa duração, como automóveis novos, disponíveis só com o pagamento de um ágio considerável, num mercado acessível só à pequena burguesia mais avançada.

Mas aumentou também o consumo de carne.

É verdade, está se comendo melhor. Com os preços previamente fixados, o trabalhador pode gastar um pouco mais. O salário mínimo aumentou, embora insuficientemente, pois defasado em dois terços do que deveria ser, segundo estudos do Dieese. Essa é que é a verdade.

O senhor mencionou há pouco o governador Leonel Brizola. O senhor não se sente, senador, incomodamente acompanhado ao compartilhar das críticas que ele também faz ao plano cruzado?

Absolutamente. No documento que preparei para a entrevista coletiva que dei no mês de março, faço inclusive um elogio ao senhor Brizola porque foi o único governador a assumir uma posição firme contra o pacote.

O senhor possui algum prazer íntimo ao se ver como uma espécie de cavaleiro solitário?

Não. Eu estou muito habituado a isso. Já muitas vezes fiquei completamente isolado. Em 1930, todos os meus colegas da Coluna e do tenentismo apoiaram a candidatura do Sr. Getúlio Vargas, e eu fui contra. Eles haviam feito de mim, quando eu estava em Buenos Aires, chefe militar da Revolução, em substituição ao marechal Isidoro, que estava muito idoso.

Depois eu fiquei um general sem soldados porque eles passaram todos para o Getúlio.

No ano passado, o senhor declarou-se equidistante de Tancredo Neves e Paulo Maluf como candidatos à Presidência no Colégio Eleitoral. Manteria hoje essa posição?

Perfeitamente. Eu me opunha ao Colégio Eleitoral por questão de princípios. O senhor sabe que o senhor Ulysses Guimarães dizia às massas, durante a campanha das diretas, que o Colégio era uma instituição espúria e ilegítima. Quando ele viu mais de seis milhões de pessoas nas ruas, aparentemente se assustou.

Mesmo tendo desembocado na "Nova República", não valeu a pena?

Não há "Nova República" nenhuma. Está tudo igual como antes. No dia seguinte da escolha dos senhores Tancredo e Sarney, os jornais, inclusive a Folha, diziam: reconquistamos a democracia, acabou o militarismo e temos uma República nova. São três mentiras.

O poder militar continua intacto. O senhor Sarney é talvez mais obediente a ele que o senhor Figueiredo. As Forças Armadas, em qualquer democracia burguesa, são um instrumento do Estado. Aqui no Brasil é ao contrário. Elas tutelam os poderes do Estado. O poder militar é a única força organizada no Brasil. O senhor conhece outro? Os sindicatos são uma força débil, reunindo apenas de cinco a dez por cento dos assalariados de cada categoria. A Igreja não tem força consistente…

Mas o senhor não acredita, para citar um exemplo, que há uma sofisticação dos mecanismos de pressão empresariais, para influir nas decisões da administração pública? Os empresários não dependem dos militares.

Eles não estão suficientemente organizados, mesmo porque, entre os empresários, não pode deixar de haver contradições. Nas Forças Armadas não há contradição; há disciplina.

Senador, um assunto inevitável: o Partido Comunista Brasileiro. O senhor considera-se uma pessoa rancorosa, criticando tanto seus ex-companheiros de militância?

Não há rancor. A divergência é política. Durante dez anos, desde dezembro de 1967, nossas discordâncias estavam evidenciadas. A crise em nosso partido teve uma dimensão inédita em todo o movimento comunista internacional. O secretário-geral, que deveria falar em nome do Comitê Central, por sua vez, se negou a reconhecer seus erros. O Brasil é um país capitalista há muitos anos, e nós negávamos essa verdade, com base no seguinte raciocínio: enquanto não acabarem o latifúndio e a dominação imperialista, o capitalismo não terá condições de surgir. Dávamos à revolução um caráter nacional e libertador, mas como o Brasil é capitalista, a revolução deveria ser necessariamente socialista.

Já em 1945, quando saí da prisão, negávamos esse caráter capitalista a um país que já estava construindo Volta Redonda. De qualquer modo, não temos ainda uma análise científica da sociedade brasileira, baseada no marxismo-leninismo. O que há são contribuições esparsas mas importantes, de Florestan Fernandes ou Celso Furtado.

Celso Furtado não se considera marxista.

Não é necessário ser marxista para se fazer uma análise da realidade, mesmo que seja do ponto de vista dele mesmo.

Como o senhor reage às críticas que o PCB faz hoje, de que o senhor impôs um estilo caciquista na direção do partido?

Acredito que eles dizem isso para fugir à crítica que nunca fizeram de si próprios. Lancei uma Carta aos Comunistas, defendendo posições políticas definidas, que até hoje permanece sem resposta. Atacam-me por eu ter sido supostamente golpista, autoritário, caudilho. Mas isso são palavras.

Em 1971, sob o pretexto de segurança, o Comitê Central decidiu que uma terça parte de seus integrantes deveria se refugiar no exterior. Eu era uma presença incômoda, e assim mandaram-me para um exílio dourado em Moscou.

Foi, de certa maneira, bom porque consegui aprofundar minha autocrítica. O PCB estava preso ao equívoco das teses aprovadas pelo Comintern em 1928, em que a noção de "países coloniais e semi-coloniais" aplicava-se à África e à Ásia, mas não à América Latina. O Brasil não tinha vice-rei indicado pelo Salazar. Já estávamos desde o século 19 a caminho do capitalismo, que por sua vez não dá margens para a solução de seus próprios problemas.

Há exagero seu. Em que sentido o senhor diz isso?

Veja, por exemplo, a questão da terra. Ela não será solucionada pelo plano do senhor Sarney, já que os interesses do latifúndio não serão contrariados. É necessário combater o monopólio da terra, limitar a propriedade.

Mas o senhor não acredita que esse problema pode avançar no Congresso constituinte?

Só se o senhor tiver alguma ilusão com a Constituinte que vem aí. Eu não tenho. Creio que ela será muito mais reacionária do que a Constituinte de que eu participei, em 1946.

Como o senhor tem posições definidas, por que então não recuar de sua decisão de não se candidatar e obter com isso a possibilidade de, no Congresso, dispor de uma tribuna para seus contatos com a opinião pública?

Não me candidato justamente por não ter qualquer ilusão. Minhas prioridades, hoje, são outras. Trabalho para que o Brasil e a classe operária brasileira disponham de um partido verdadeiramente revolucionário.

Desde 1979, quando da ruptura do senhor com a direção do PCB, o senhor tem acalentado esse projeto, mas até agora esse partido não existe.

Não existe e por quanto não pode existir. Não há quadros marxistas no Brasil. Nunca se estudou marxismo. Até os intelectuais do PCB, que estudaram na União Soviética, são hoje anti-soviéticos. Ser anti-soviético, para mim, é o mesmo que ser anticomunista.

O senhor acredita, senador, que se pode atribuir ao atraso tecnológico da União Soviética o acidente ocorrido esta semana com a usina nuclear perto de Kiev [Tchernóbil]?

Acidentes como esse são quase inevitáveis. Eles têm ocorrido nos Estados Unidos, no Japão e em outros países. O que se está fazendo no Brasil é um estardalhaço malicioso. Ainda hoje li nos jornais afirmações de que teria morrido mais gente que em Hiroshima, quando o que dizem turistas estrangeiros, que estavam em Kiev e chegaram em Moscou, é que tudo está calmo.

Eu apoio a União Soviética porque ela é, a meu ver, o centro da revolução mundial. Eu não a critico mesmo por seus erros porque acho que eles devem ser apontados pelos próprios soviéticos.

Uma provocação inevitável, senador. O senhor pronunciou-se contra a censura imposta, no Brasil, ao filme "Ave Maria", de Jean-Luc Godard. O senhor criticaria com a mesma veemência a censura na União Soviética?

Há censura na União Soviética, e ela se justifica porque a União Soviética é o ponto focal para onde se dirige a luta ideológica do imperialismo contra o socialismo. Todo governo tem a obrigação de defender a sua Constituição. E a Constituição Soviética obedeceu a critérios de elaboração bem mais democráticos do que em qualquer país capitalista.

A Constituição diz: "O regime aqui é socialista", e todos aqueles que combatem o socialismo devem ser censurados.

Desviando, agora, para questões pessoais. O senhor ficou assustado antes de extrair dois pólipos do intestino grosso, em fins de janeiro? O senhor teve medo de morrer?

Não tenho a mínima preocupação com a morte, até mesmo porque um dia eu terei que morrer (ri). Pode ser num acidente desses.

Mas o senhor não gostaria de viver ainda muitos anos para tocar adiante seus projetos políticos?

Não, não. Eu trato é de usar bem os anos que me restam de vida. Tenho certeza de estar fazendo o possível para esclarecer a classe operária e a juventude.

O senhor leu o livro "Olga", do Fernando Morais? Ele é fiel à vida de Olga Benário?

Li e, no fundamental, ele é fiel, apesar de numerosos pequenos erros. Ele havia prometido que, antes de mandar o livro ao prelo, o submeteria a minha apreciação e à de minha filha, mas isso não foi possível. Na essência, o livro é verídico e ele, como repórter, foi muito feliz.

Fernando Morais narra com muito respeito detalhes íntimos de sua convivência conjugal. Diz, por exemplo, que antes de se casar com Olga Benário o senhor não tinha tido relações com nenhuma outra mulher. É verdade?

Aquilo foi um pouco de exagero dele. Isso é uma questão pessoal, particular. Não seria nenhum mérito nem nenhum defeito. Eu estava com 36 anos, era solteiro, já que, desde a morte de meu pai, quando eu tinha dez anos, trasformei-me em chefe de família.

Senador, como um homem de 88 anos de idade e ainda bastante dinâmico vive sua rotina? O senhor dorme bastante, alimenta-se bem?

Alimento-me muito normalmente, sem nenhuma dieta ou cuidado especial. Dormir, continuo dormindo pouco, por hábito de quando era oficial do Exército.

E o que o senhor mais gosta de comer?

Eu como de tudo. Não tenho predileção por nada. O sentido menos agudo que eu tenho é o paladar. Fui educado comendo comida do Colégio Militar e da Escola Militar, na base de feijão com arroz e um ensopado de carne, e como sobremesa uma laranja ou uma banana.

O senhor não fuma?

Não. Nunca fumei.

O senhor gosta de tomar um aperitivo antes das refeições?

Eu bebo quando é necessário. Em 1980, por exemplo, estive em Brasília e visitei as embaixadas da União Soviética, Bulgária, Alemanha Democrática e Tchecoslováquia. Em cada uma delas ofereciam-me um cálice de conhaque, e eu aceitava.

E o senhor não gosta de beber?

Não gosto de cachaça. Nisso não sou nem um pouco brasileiro. Prefiro esporadicamente um cálice de vinho do porto.

O que o senhor está lendo agora, de ficção?

Comecei há pouco um romance de Thomas Mann, "Doutor Fausto". Mas leio bem mais coisas de política. Ainda ontem recebi o último número da Revista Internacional e estou com o informe do camarada Gorbachev ao 27º Congresso do PC Soviético, com sua apreciação autocrítica sobre o atraso técnico da União Soviética.

Que tipo de música o senhor gosta de ouvir?

Ah, eu gosto só de música clássica. Acompanho também música popular. Gosto dos sambas do Noel Rosa.

O senhor gosta de rock?

Para falar a verdade, eu não compreendo essas músicas modernas e barulhentas norte-americanas.

Qual foi o último filme que o senhor assistiu?

É muito difícil dizer. Foi há alguns meses. Agora estava interessado em ver "A História Oficial", esse filme argentino sobre a tortura.

O senhor tem videocassete em casa?

Não, não tenho. É um equipamento muito caro e decidimos, ainda, não comprar.

O senhor tem como única fonte de renda a aposentadoria de capitão reformado do Exército?

Não, não tenho nada a ver com as Forças Armadas. Fui expulso duas vezes. Aliás, a chamada anistia de 1945 não foi verdadeiramente uma anistia. Foi uma soltura de presos políticos, inclusive minha, já que passei nove anos em regime de absoluto isolamento. Eu nunca reivindiquei coisa nenhuma.

Qual então a fonte de renda do senhor?

Eu vivo única e exclusivamente de contribuições que me são feitas por meus amigos. Esse apartamento foi cedido por Oscar Niemeyer, e o automóvel foi dado também por amigos, no meu aniversário, em 1983.

O senhor se considera um homem feliz?

Sou, isso sou. Sempre me considerei um homem feliz. Todo revolucionário deve ter certa parcela de estoicismo. A felicidade consiste em desejar que as coisas aconteçam exatamente como elas acontecem.

Mas o senhor não conseguiu fazer a revolução no Brasil, senador. Isso não o deixa, aos 88 anos, absolutamente frustrado?

A verdade é que não existiram condições para isso. Antes de se fazer a revolução, será preciso levar a democracia para as massas. No Brasil, a democracia é para uma elite, e mesmo assim no litoral. No interior, o camponês não tem a quem se queixar porque o promotor e o delegado de polícia estão todos a serviço do fazendeiro.

Veja, por exemplo, o congresso dos camponeses em Curitiba, denunciando que nos últimos dois anos foram assassinados 267 dirigentes sindicais. A Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura] revela, por sua vez, que até março deste ano foram mortos outros 38. O primeiro direito do cidadão a ser respeitado deveria ser o da inviolabilidade do lar. A polícia não o respeita.

Veja o senhor as violências cometidas contra os líderes dos bóias-frias pela polícia do senhor Montoro, arrancando-os de casa para chicoteá-los. É talvez por isso que o senhor Fernando Henrique Cardoso perdeu as eleições no ano passado em São Paulo.

O senhor já foi assaltado?

Não. Minha filha uma vez foi roubada. Mas eu não fiquei indignado. Vejo isso com muita frieza. O fenômeno é inevitável numa sociedade com distribuição de rendas tão injusta como o Brasil.

Veja o relatório que o senhor Hélio Jaguaribe apresentou para o senhor Sarney. O estudo surpreendeu muito o senhor Sarney, mas a mim não surpreende. São 77 milhões os brasileiros vivendo em miséria absoluta. Os governos não se interessam por isso, por mais que a nação seja o próprio povo.

O senhor acredita numa transição pacífica do Brasil ao socialismo?

A forma da revolução é secundária. O importante é uma tática justa. Não creio que se possa descartar uma revolução sem conflitos do tipo guerra civil ou luta armada. De qualquer forma, haverá violência.

Acredito que, com a concentração da classe operária no eixo São Paulo-Rio-Belo Horizonte, e na medida em que ela se organize e conquiste a democracia, é inevitável que ela forme o bloco revolucionário, juntamente com os camponeses e a pequena burguesia urbana.

Esse bloco lutaria contra o latifúndio, o imperialismo como inimigo externo e os monopólios nacionais e estrangeiros como inimigo interno. Estaremos então com o caminho aberto para o socialismo.

Se o senhor fosse eleitor em São Paulo, em quem votaria entre esses três candidatos: Orestes Quércia, Eduardo Suplicy e Antônio Ermírio de Moraes?

Por enquanto, não tenho uma posição a respeito. A situação ainda está aparentemente muito confusa, e essa será uma eleição de grandes fortunas, como a do senhor Ermírio.

E em termos de Rio de Janeiro, como o senhor vê a candidatura de Fernando Gabeira pelo PT?

É um direito dele. Qualquer cidadão brasileiro tem o direito de ser candidato.

Se ele pedir seu apoio, o senhor o dará?

Não. Acho que os únicos partidos que tendem a crescer, por não estarem comprometidos com o governo federal, são o PT e o PDT. Mas aqui no Rio o PT tem uma presença insignificante. Eu não gosto de votar para ser derrotado.

Então sua preferência iria para o pedetista Darcy Ribeiro?

A situação ainda não está muito definida. O senhor Darcy Ribeiro só será candidato depois da convenção.

Este texto faz parte da série Entrevistas Históricas, que lembra conversas marcantes publicadas pela Folha.

Entrevistas Históricas

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  9. Nelson Rodrigues disse à Folha como assassinato do irmão influenciou seu teatro

  10. 'Projeto norte-americano está falindo', disse Hobsbawm à Folha em 2007

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  12. Após 15 anos no exílio, Paulo Freire concedeu à Folha sua primeira entrevista

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