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Folha, 100 Cartas para o futuro

Home office no campo e jovens na grande cidade barateada

Com a pandemia da Covid-19, metrópoles que construímos deixaram de fazer sentido

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Francesca Angiolillo
Francesca Angiolillo

Jornalista e escritora, prepara uma biografia de Tarsila do Amaral para Companhia das Letras

Este texto faz parte da série Cartas Para o Futuro, em que colunistas, repórteres e editores da Folha imaginam os cenários das suas respectivas áreas de atuação em 2031

Caro leitor que me aguarda em 2031,

Começo contando que fiquei um pouco paralisada quando me pediram que eu me dirigisse a você, que não sei quem é —e que pode ser qualquer um, inclusive eu mesma, atravessada pelas mudanças que dez anos decerto trarão, mesmo se não temos conseguido vislumbrá-las facilmente.

O ano de 2021 começou como um contínuo de 2020, o globo imerso numa crise de proporções comparáveis às da Segunda Guerra Mundial, a pandemia de Covid-19, devastadora infecção batizada com o nome de um ano que foi anteontem e já parece longínquo.

Quando a pandemia foi decretada, em março de 2020, meu filho, que tinha 12 anos, me perguntou se eu achava que o momento que vivíamos estaria um dia nos livros de história.

“Sim”, respondi sem hesitar.

Agora tento adivinhar que mudanças os historiadores registrarão.

O que se viu em termos de desenvolvimento científico em apenas um ano —por mais que a combalida ciência tenha sido violentada todos os dias— nos permite pensar que outras pandemias, e elas virão, nos encontrarão muito mais bem preparados.


O que não estará sob controle em tão pouco tempo são os efeitos da crise de 2020.

ilustração do topo do edifício bandeirantes, com a bandeira do estado de são paulo estirada em um mastro
As metrópoles que construímos deixaram de fazer sentido e modo de vida nas cidades deve mudar - Catarina Pignato


Talvez por deformação profissional —além de jornalista, sou arquiteta e escrevo sobre urbanismo para a Folha—, o modo de vida nas cidades é a primeira instância que me vem à cabeça.

Tenho pensado dia sim e outro também em como as metrópoles que construímos deixaram de fazer sentido. De que vale estar em São Paulo se prazeres citadinos se tornaram perigosos demais?

Assim como desenvolvemos regras mundiais para voar depois do 11 de Setembro, em 2031 teremos protocolos sanitários para passar horas numa sala escura com ar-condicionado sem temer o que entra pelas nossas vias respiratórias. Mas haverá tais salas?

Talvez ir ao cinema ou a um restaurante se torne experiência exótica, uma atração de parque temático, como era, nos anos 1980, um jantar num Medieval Times qualquer.

Antes da pandemia, você há de se lembrar, já havia entre certos grupos sociais um neoludismo, um culto da natureza e do puro. Quem pôde buscou em 2020 se mudar para cidades menores, valendo-se da entrada triunfal do home office em nossas vidas.


Em 2031, cidades pequenas e médias do interior terão se inflado com famílias que procuraram dar a seus filhos qualidade de vida. Os governantes terão de ter muita visão para evitar que o contingente de forasteiros não degrade aquilo que o atraiu.

Em movimento oposto, jovens ocuparão os grandes centros, onde a vida terá se barateado com a evasão. Quem sabe, construirão um ambiente mais equilibrado do que aquele que deixamos em 2020.

Quero muito acreditar que, no seu cotidiano, palavras como polarização e fake news já terão caído em desuso.

Quero crer que, tendo sido alijados do convívio físico, passemos outra vez a valorizar o olho no olho e que as redes sociais tenham voltado a ser aquilo que eram quando surgiram, um meio simpático para encontrar aqueles com quem a gente não podia simplesmente ir tomar um café.

Quero muito acreditar que palavras como polarização e fake news já terão caído em desuso

Francesca Angiolillo

Repórter especial da Folha


Que tenhamos aprendido, nesse futuro que parece distante e que nos alcançará num piscar de olhos, a cultivar a saudável dúvida, em vez da certeza surda. E que possamos viver cada dia de 2031 sem pensar, com certo temor escondido, em como será 2041.

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