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Mulheres são vistas como consumidoras, não cidadãs plenas, diz poeta

Para Stephanie Borges, jornalismo fará um grande favor se parar de mistificar o feminismo

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Stephanie Borges

Poeta, tradutora e jornalista, é autora de “Talvez Precisemos de um Nome para Isso”. Apresenta o podcast Benzina.

São Paulo

Como parte dos projetos especiais dos 100 anos da Folha, o jornal convidou 13 integrantes de grupos sub-representados no jornalismo profissional praticado no Brasil. Eles expõem episódios de preconceito e desinformação, além de problemas na relação com jornalistas e na forma como a imprensa noticia —ou não noticia— questões que os afetam direta ou indiretamente.

Batizada de “E Eu? - O Jornalismo Precisa me Ouvir”, a série é formada por vídeos e depoimentos em forma de texto.

A jornalista, poeta e tradutora Stephanie Borges, no auditório da Folha
A jornalista, poeta e tradutora Stephanie Borges, no auditório da Folha - Bruno Santos/Folhapress

Jornalista, tradutora e poeta, Stephanie Borges, 36 anos, fala sobre a representação das feministas na imprensa. Ela é autora do livro “Talvez Precisemos de um Nome para Isso” e apresentadora do podcast Benzina. Leia entrevista ou assista ao vídeo (há uma versão com recursos de acessibilidade logo abaixo).

VERSÃO COM RECURSOS DE ACESSIBILIDADE

Ninguém chega no feminismo porque quer, chega porque o patriarcado obriga a gente. Negociei essa questão durante muito tempo, mas a minha vida nunca me deu muita opção que não fosse ser feminista.

Fui parar no feminismo ao me deparar com uma série de situações na minha vida profissional. Eu descobria, por exemplo, que pessoas que exerciam a mesma função que eu ganhavam bem mais, sem nenhuma explicação. Eu pensava, "Gente, não é possível que isso seja só comigo, que seja coisa da minha cabeça."

Entendi que várias questões da minha vida não eram pessoais, eram estruturais. A partir daí, comecei a falar com tranquilidade que sou feminista e traduzir autoras feministas para espalhar a palavra.

A gente ainda tem que explicar para as pessoas que não é um feminismo, são vários. Existem várias vertentes, várias feministas inseridas em lutas diferentes.

Stephanie Borges com a coletânea 'Por um feminismo afro-latino-americano', de Lélia González, e os livros 'Cidadã', de Claudia Rankine, 'Irmã Outsider' e 'A Unicórnia Preta', de Audre Lorde, que traduziu
Stephanie Borges com a coletânea 'Por um feminismo afro-latino-americano', de Lélia González, e os livros 'Cidadã', de Claudia Rankine, 'Irmã Outsider' e 'A Unicórnia Preta', de Audre Lorde, que traduziu - Bruno Santos/Folhapress

Quando a gente fala de igualdade, não quer ocupar um lugar de dominação. A gente quer ter uma cidadania plena, ser reconhecida como sujeito político, ter tranquilidade para sair na rua e se relacionar com quem a gente quiser. Isso não deveria ser uma coisa que a gente precisa explicar o tempo todo.

Por um bom tempo, o feminismo que chegou à imprensa foi tratado como questão comportamental —"Mulheres querem ter o direito de fazer topless", "Mulheres querem parar de se depilar". São questões que as mulheres têm direito de querer, mas existem outros aspectos muito sérios.

De tempos em tempos surgem estatísticas que mostram que a violência contra a mulher no Brasil aumentou, e a gente não está debatendo o que permite que isso aconteça. A gente não está discutindo como a mulher é tratada como alguém que deve viver em função de um relacionamento ou da família, como ainda é responsabilizada depois de uma agressão.

A gente quer ter uma cidadania plena, ser reconhecida como sujeito político, ter tranquilidade para sair e se relacionar com quem quiser

Stephanie Borges

Jornalista, tradutora e poeta

A linguagem jornalística tem essa preocupação com a objetividade e com a responsabilidade jurídica de não condenar uma pessoa, mas até que ponto isso não reforça a violência? Ao usar construções como "suposto estupro", você coloca a palavra da denunciante em dúvida quando existem agressões óbvias. Se você tem um vídeo de vários homens tendo relações sexuais com uma menina desacordada, claramente é um estupro.


Hoje tem um governo que mostra um claríssimo desprezo pelas mulheres, tem uma ministra que diz que só existe um jeito de ser mulher. A estratégia deles é justamente dizer que existem duas polaridades, a deles e a outra. É como se você tivesse que escolher entre dois tipos de opressão —uma pela extrema direita e outra pela extrema esquerda—, sendo que não é isso que está em jogo. O jornalismo declaratório acaba naturalizando esse discurso absurdo.

Se o jornalismo parar de mistificar o feminismo, já faz um grande favor. As mulheres são vistas como mercado consumidor, mas não como cidadãs plenas. Tem muitas mulheres que são chefes de família, que são empreendedoras porque precisam empreender —e aí falo especificamente de mulheres negras.

A mulher serve para ser objetificada, para consumir, para servir, mas quando a gente quer debater aborto isso vira uma pauta moral.

Não estou interessada nas escolhas individuais das mulheres. Quero saber como a gente faz para desnaturalizar esse grau de violência em que a cada sete horas uma mulher morre por ser mulher.

Como a gente começa a noticiar essas coisas sem tratar como um caso isolado? Precisamos colocar a mulher na notícia como sujeito, como alguém que tem direito de sair de uma relação, como alguém que não merece apanhar.

O feminismo negro olha para questões estruturais. A Lélia Gonzalez fala sobre como, no Brasil, mesmo as pessoas brancas que não estão entre os 5% mais ricos colhem dividendos indiretos do racismo, porque têm mais oportunidades. O corpo branco nunca é considerado inadequado para um determinado espaço. Ninguém estranha que uma mulher branca seja presidente de uma empresa hoje —mas uma mulher negra que chefia uma empresa que ela não fundou é uma exceção.

Quando alguém aponta um machismo ou racismo, a tendência é a pessoa personalizar. Mas quando a gente pontua essas coisas, quer mostrar uma estrutura social. Leva tempo para ver o quanto a linguagem está carregada de preconceito. É chato passar por esse processo, mas tem a ver simplesmente com estender a dignidade para outras pessoas.

Dignidade é uma coisa que todo mundo quer, e tem que ter para todo mundo.

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