Descrição de chapéu Como chegar bem aos 100

O que seria de nossos Carnavais sem o olhar experiente dos idosos das Velhas Guardas?

A avó de minha infância ainda existe porque eu tive tempo de observá-la: ela passou a existir em mim

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Lia Vieira

Escritora e coordenadora da área de questões do envelhecimento da mulher negra no Centro Internacional da Longevidade (ILC) no Brasil

Maria Ricardina, minha avó, conhecida por todos como tia Neném, sempre teve uma saia rodada e uma alma cintilante. Ela e meu avô, o Tião Marceneiro, eram figuras conhecidas no largo do Serrão, aqui em Niterói. Eles povoaram minha infância e juventude. Me fizeram sonhar.

Vovô nasceu ali naquela casa humilde, mas de chão dadivoso. Em seu gosto pelas plantas, minha avó fez-me conhecer e cultivar mudas incomuns: patchuli, malva-maçã, bogari, assim como as medicinais jurubeba, canforada, arnica... Vejam por onde entram as tradições, a cultura.

Nesse ambiente eleito, nasceram os filhos Teresa, Sebastião e Lurdes, minha mãe.

Minha avó sempre foi totalmente empolgada com os festejos carnavalescos. Repetia sempre ter sido ela a criar a Ala das Baianas, a mais mágica nos desfiles.

Ala das baianas da escola de samba Inocentes de Belford Roxo, no Rio de Janeiro, em 2013
Ala das baianas da escola de samba Inocentes de Belford Roxo, no Rio de Janeiro, em 2013 - Danilo Verpa/Folhapress

Com a pressão do amor, ela passava os três meses que antecediam a festa nos preparativos de fantasias criativamente elaboradas: arlequins, bailarinas, baianinhas e gregas, que a cada ano eram inovadas.

Enérgica e suave em seu gosto por fantasias e enfeites, fez-me conhecer e identificar tecidos, miçangas e todo tipo de adereços usados nos festejos.

Sua casa, na rua Ipiranga, possuía vários cômodos e uma grande varanda. Destacava-se das demais por ser uma extensão do terreiro do samba, local ideal para receber suas ilustres amigas com faustoso lanche regado a cafezinho, bolo de fubá e deliciosos manjares. O assunto girava sobre Carnavais passados, e eles encerravam sempre a prosa com a frase “não se faz mais Carnaval como antigamente”.

A afinidade: na folia, criavam laços de força ancestral. Mulheres baobás. “Aqui é uma comunidade, tudo uma parentagem só”.

No dia da folia, o ritmo era frenético, colares, pulseiras, brincos, saias cuidadosamente engomadas, muito pó de arroz, batom carmim e sebo nas canelas. Samba decorado, passos marcados, alegria contagiante. A avenida, o palco iluminado. Universo do samba.

A passagem dos anos deu a tia Neném, minha avó, o aspecto de uma bela, preciosa antiguidade. Exalando a força vital de toda uma raça em seus ideais de liberdade. A bata branca de cambraia sobre a saia estampada muito engomada eram traços de vivências de sua geração. Cabelo partido ao meio, negro e ondulado, escondia nos bandós os fios brancos. Sempre de brincos de argola de ouro, presente de casamento de meu avô.

Temperamento marcante, vitalidade contagiante, irradiava uma convincente autoridade natural. Seus traços aristocráticos refletiam uma fascinante gama de sentimentos: coragem, esperança, alegria.

A avó de minha infância ainda existe porque eu tive tempo de observá-la: ela passou a existir em mim. É dessa fusão de tempos perdidos que desejo fazer a colheita de tempos fugazes que evoca minha ancestralidade. Possa eu viver ainda porque há em mim tanto que não foi visto, concedam-me a estação das contemplações, peço a sobrevivência remanescente da minha afro identidade.

Na alma, a inquietação em multiplicar ações e a necessidade de fomentar estudos para ressignificar gênero, raça, saúde e envelhecimento, numa análise do que preconizamos nos movimentos contemporâneos dos longevos, um novo olhar.

O olhar da experiência, da inclusão, do bem viver, refletido no espelho do tempo. Não é à toa que a essência dos desfiles das escolas de samba foi e será sempre as Velhas Guardas que, imperiais, saúdam o público deslumbrado.

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