Fernando Sabino escreveu sobre autoritarismo em crônica de 1958

Seção Colunas Eternas revive textos de colunistas que fizeram parte da história centenária da Folha

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São Paulo

O escritor mineiro Fernando Sabino (1923-2004) teve produção intensa tanto na literatura quanto no jornalismo. Autor de mais de 40 livros, entre eles best-sellers, seus textos publicados em jornais o tornaram um dos nomes mais importantes da crônica.

Na Folha, Sabino assinou colunas em dois períodos, de 1958 a 1959 e de 1984 a 1987, quando passou a publicar semanalmente a seção "Dito e Feito". Nela, casos cotidianos e conversas despretensiosas eram fontes para refletir sobre a cultura e a realidade brasileiras.

homem branco sentado em poltrona gesticula conversando
O escritor mineiro Fernando Sabino é autor de best-sellers, como "A Faca de Dois Gumes" e "O Grande Mentecapto"; ele foi colunista da Folha nas décadas de 1950 e 1980 - Paulo Cerciari - 08.abr.1985/Folhapress

Sabino começou a escrever profissionalmente aos 17 anos, publicando artigos e crônicas em veículos de Belo Horizonte, sua cidade natal. É desses textos que tirou grande parte do sustento ao longo dos seus 80 anos de vida.

Na série Colunas Eternas, que retoma textos de colunistas históricos da Folha, publicamos agora dois textos de Sabino que exemplificam bem seu estilo de observador sensível.

Em "A mulher do sueco", de 1958, um caso envolvendo um imigrante europeu, um general e um delegado expõe as dinâmicas de poder e o autoritarismo corriqueiro na sociedade brasileira. O texto faz parte da antologia "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século", organizada por Ítalo Moriconi em 2000.

No texto de sua coluna "Dito e Feito", publicado em outubro de 1984, uma placa de elevador de redação truncada e proibição misteriosa paralisa o escritor por alguns minutos. E, assim, Sabino mostra como até uma viagem de elevador qualquer pode dar em uma boa história.

Leia as duas crônicas na íntegra.

A mulher do sueco

Contaram-me que na rua onde mora (ou morava) um conhecido e antipático general de nosso Exército morava (ou mora) também um sueco, cujos filhos passavam o dia jogando futebol com bola de meia. Ora, às vezes acontecia cair a bola no carro do general e, um dia, o general acabou perdendo a paciência, pediu ao delegado do bairro para dar um jeito nos filhos do sueco.

O delegado resolveu passar uma chamada no homem e intimou-o a comparecer à delegacia.

O sueco era tímido, meio descuidado no vestir e, pelo aspecto, não parecia ser um importante industrial, dono de grande fábrica de papel (ou coisa parecida), que realmente ele era.

Obedecendo à ordem recebida, compareceu em companhia da mulher à delegacia e ouviu calado tudo que o delegado tinha a dizer-lhe. O delegado tinha a dizer-lhe o seguinte:

— O senhor pensa que só porque o deixaram morar neste país pode logo ir fazendo o que quer? Nunca ouviu falar numa coisa chamada AUTORIDADES CONSTITUÍDAS? Não sabe que tem de conhecer as leis do país? Não sabe que existe uma coisa chamada EXÉRCITO BRASILEIRO que o senhor tem de respeitar? Que negócio é este? Então é ir chegando assim sem mais nem menos e fazendo o que bem entende, como se isso aqui fosse casa da sogra? Eu ensino o senhor a cumprir a lei, ali no duro: dura lex! Seus filhos são uns moleques e outra vez que eu souber que andaram incomodando o general, vai tudo em cana. Morou? Sei como tratar gringos feito o senhor.

Tudo isso com voz pausada, reclinado para trás, sob o olhar de aprovação do escrivão a um canto. O sueco pediu (com delicadeza) licença para se retirar. Foi então que a mulher do sueco interveio:

— Era tudo que o senhor tinha a dizer a meu marido?

O delegado apenas olhou-a espantado com o atrevimento.

— Pois então fique sabendo que eu também sei tratar tipos como o senhor. Meu marido não é gringo nem meus filhos são moleques. Se por acaso incomodaram o general ele que viesse falar comigo, pois o senhor também está nos incomodando. E fique sabendo que sou brasileira, sou prima de um major do Exército, sobrinha de um coronel, e FILHA DE UM GENERAL! Morou?

Estarrecido, o delegado só teve forças para engolir em seco e balbuciou humildemente:

— Da ativa, minha senhora?

E ante a confirmação, voltou-se para o escrivão, erguendo os braços desalentado:

— Da ativa, Motinha! Sai dessa...

Dito e feito

Quando cheguei ao edifício, tomei o elevador que serve do primeiro ao 14º andar:

— Sétimo —pedi.

Eu estava sendo esperado no auditório daquela companhia, onde faria uma palestra. Eram as secretárias que celebravam o seu dia e que, desvanecedoramente para mim, haviam me incluído entre as celebrações.

A porta se fechou e começamos a subir. Minha atenção se fixou num aviso que dizia:

É expressamente proibido os funcionários, no ato da subida, utilizarem os elevadores para descerem.

Desde os meus tempos de ginásio, sei que se trata de problema complicado, este do infinito pessoal. Prevaleciam então duas regras mestras que deveriam ser rigorosamente obedecidas, quando se tratava do uso deste traiçoeiro tempo de verbo.

O diabo é que as duas não se complementavam: ao contrário, em certos casos francamente se contradiziam. Uma afirmava que o sujeito, sendo o mesmo, impedia que o verbo se flexionasse. Da outra, infelizmente já não me lembro; bastava a primeira para me assegurar que, no caso, havia um clamoroso erro de concordância.

Mas não foi o emprego pouco ortodoxo do infinito pessoal que me intrigou no tal aviso: foi estar ele concebido de maneira chocante aos delicados ouvidos de um escritor que se preza.

Ah, aquela cozinheira a que se refere García Márquez, que tinha redação própria! Quanta vezes clamei, como ele, por alguém que me pudesse valer nos momentos de aperto, qual seja o de redigir um telegrama de felicitações ou um simples aviso como este:

É extremamente proibido os funcionários...

Eu já começaria por tropeçar na regência, teria de consultar o dicionário de verbos e regimes: não seriam aos funcionários? E nem chegaria a contestar a validade de uma proibição, cujo aviso se localizava dentro do elevador e não do lado de fora: só seria lido pelos funcionários que já houvessem entrado e, portanto, incorrido na proibição de pretender descer quando o elevador estivesse subindo. Contestaria apenas a maneira ambígua pela qual isto era dito:

...no ato da subida, utilizarem os elevadores para descerem.

Qualquer um, não sendo irremediavelmente burro, entenderia o que se pretende dizer neste aviso. Pois um tijolo de burrice me baixou na compreensão, fazendo com que eu ficasse revirando a frase na cabeça: descerem, no ato da subida? Que quer dizer isto? E buscava uma forma simples e correta de formular a proibição:

É proibido subir para depois descer.

É proibido subir no elevador com intenção de descer.

É proibido ficar no elevador com intenção de descer, quando ele estiver subindo.

Descer quando estiver subindo! Que coisa difícil, meu Deus! Quem quiser que experimente para ver só. Tem de ser bem simples:

Se quiser descer, não tome o elevador que esteja subindo.

Ou então:

Se quiser descer, só tome o elevador que estiver descendo.

Mais simples ainda:

Se quiser descer, não suba.

De tanta simplicidade, atingi a síntese perfeita do que Nelson Rodrigues chamava de "óbvio ululante", ou seja, a enunciação de algo que não quer dizer absolutamente nada. Tinha de me reconhecer derrotado, o que era vergonhoso para um escritor, mas não me considerava capaz de redigir adequadamente aquele aviso.

Foi quando me dei conta de que o elevador havia passado do sétimo andar, a que me destinava, já estávamos pelas alturas do 13º.

— Pedi o sétimo, o senhor não parou! —reclamei.

O cabineiro protestou:

— Fiquei parado um tempão, o senhor nem se mexeu.

Os demais passageiros riram:

— Ele parou sim. O senhor estava aí distraído.

— Falei três vezes, o senhor não desceu —reafirmou o cabineiro.

— Eu estava lendo isto aqui —respondi idiotamente, apontando o aviso.

Ele abriu a porta do 14º, os demais passageiros saíram.

— Convém o senhor sair também e descer noutro elevador. A não ser que queira ir até o último e na volta descer parando até o sétimo.

— Não é proibido descer no que está subindo?

Ele riu:

— Então desce num que esteja descendo.

— Este vai subir mais? —perguntei ainda —Lá embaixo está escrito que este elevador vem só até o 14º.

— Para subir. Para descer, vem desde o último.

Desci ali mesmo, como ele sugeria, já completamente confuso com relação às regras de funcionamento dos elevadores naquele prédio. E, seguindo o conselho do cabineiro, pressionei o botão, passando a aguardar um que estivesse descendo.

Que tardou, e muito. Quando finalmente chegou, só reparei que era o mesmo pela cara do cabineiro, recebendo-me às gargalhadas.

Cheguei ao auditório com 15 minutos de atraso. Ao fim da palestra me fizeram perguntas, e alguém quis saber como nasce uma história. Comecei a contar:

— Quando cheguei ao edifício, tomei o elevador que serve do primeiro ao 14º andar.

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