500 mil mortos, milhões de sequelados e nenhuma empatia

Presidente ignora luto nacional e os efeitos duradouros da pandemia da Covid-19

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Alexandre Kalache

Médico gerontólogo, presidente do Centro Internacional de Longevidade no Brasil (ILC-BR)​

Estamos em ritmo acelerado rumo à posição de país com o maior número de mortes.

Seriam mais ainda se fôssemos tão envelhecidos quanto um país como a Espanha, que tem proporcionalmente o dobro de idosos. Cerca de 75% das mortes ocorrem entre eles. Se fôssemos tão envelhecidos quanto a Espanha, teríamos outros 300 mil óbitos pela Covid.

A vacinação dos mais velhos já está salvando vidas. No entanto, seguimos no patamar de mais de 2.000 mortes por dia. Conseguimos rejuvenescer a pandemia. Que estrago! Em um país de grandes sanitaristas, com um invejável Programa Nacional de Imunização (PNI).

E do presidente, tão aficionado a seus infelizes tuítes, nem uma só palavra de empatia. Quando se perde a humanidade, não resta nada a oferecer.

Mas e os sequelados? A “Covid longa” acomete entre 20% e 30% dos infectados. Por quanto tempo sofrerão as consequências? Problemas circulatórios, neurológicos, de saúde mental. E a fadiga crônica? A que custo social, de perda de produtividade? Sobrecarga aos serviços de saúde e de cuidados. A conta maior vai sempre para as famílias, mas também para o SUS e para os planos de saúde.

homem segura cartaz com cruz desenhada e as palavras "500 mil mortos"
Manifestante segura cartaz durante protesto contra o presidente - Carolina Daffara - 19.jun.2021/Folhapress

Mando (apelido de Dilermando, avô materno de meus filhos) contava sempre sua história pessoal. Era o mais velho de cinco irmãos. Aos 9 anos perdeu o pai, 30 anos incompletos, na gripe espanhola. Do leito de morte, ele pediu ao filho que cuidasse sempre, como primogênito, dos irmãos.

A caminho do cemitério, Mando viu carroças transportando os corpos de tantas vítimas. As imagens permaneceram com ele por toda a sua longa vida. Como incontáveis brasileiros, traumatizados hoje, carregarão a dor e as imagens por décadas.

A família era do sul de Minas Gerais. À jovem mãe faltavam habilidades para tocar a fazenda de café. Casou-se de novo e, aos demais, juntaram-se outros quatro filhos. Logo o novo marido pôs tudo a perder. E o Mando cumpriu a promessa feita ao pai, assumindo as responsabilidades de uma paternidade precoce daquele bando de irmãos.

Há que se somar aos mortos, os sequelados sob múltiplos ângulos. Estamos diante de uma sindemia, a convergência de várias crises, a sanitária, de desemprego, de fome e de desalento, além do impacto educacional e da desigualdade crescente. E cicatrizes a longo prazo que Mando bem sabia contar.

Muitas perdas, não só de vidas, que levam ao luto —abafado e sem reconhecimento dos "líderes".

A língua portuguesa, com toda a sua riqueza para expressar sentimentos, não capta a extensão do sofrimento. Em inglês a palavra "luto" pode ser traduzida de várias formas: bereavement, mourning, grief. Não são sinônimos e têm difícil tradução para o português.

São as peculiaridades de cada idioma —como a palavra "saudade", que não tem equivalente em inglês. Nem por isso uma pessoa que o tenha como idioma materno deixa de experimentar o sentimento.

Todas essas palavras são uma resposta à morte. Entretanto, o luto pode também ser uma resposta a outras perdas: de autonomia, de independência financeira, de status ou de relacionamentos. Ou do amor paterno, como no caso de Mando.

No entanto, o governo prefere “celebrar" os 17 milhões de “curados”. Não importa que milhões deles sejam sequelados.

George Orwell, em seu distópico romance "1984", já nos havia advertido. Mascarar os dados era função de todo um departamento. Uma tragédia descomunal, com uma distorção inconcebível, passa a ser um trunfo. O nefasto "newspeak”, em que palavras e fatos perdem seu significado, anunciava as fake news.

Vamos permitir que desfigurem empatia? Ou o dever de um governo de manifestá-la?

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