Helena Silveira se destacou na crítica de TV nos anos 1970

Jornalista e escritora começou a trabalhar na Folha da Manhã na década de 1940

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São Paulo

Sônia Braga, de vestido curto de chita, sobe no telhado para resgatar uma pipa. A cena da novela “Gabriela”, de 1975, que se tornaria histórica na teledramaturgia brasileira, foi assim registrada na Ilustrada pela prestigiosa crítica de TV Helena Silveira:

“Sorri, diante das imagens: Ilhéus alvoroçada porque a mais bonita das mulatas confundia sua cor de canela com as telhas [...] Ali estavam os dedos de Walter Avancini [diretor], um virtuose da imagem e que não podia achar melhor prato do que este: meninos negros, um menino chorão branco e toda a cidade como que recuperando a infância através da criatura solta, ali, trepada sobre o telhado, cobiçada por gente adulta e bitolada em conceitos, regras de bom comportamento [...] Se, sob o ponto de vista da realidade, extrapolou-se para uma situação poética –fantasiosa, não tem a menor importância, o importante foi mostrar que o espetáculo melhor na vida é a criatura humana quando se expande, livre, adquirindo a grandeza de um voo solto.”

retrato em preto e branco de mulher branca, vestida de forma elegante, trabalhando em sua máquina de escrever
A jornalista Helena Silveira trabalha em máquina de escrever - Arquivo Folhapress

Era com um texto literário, sensível e sintonizado com o telespectador, em um estilo entre a crítica e a crônica, que Helena Silveira registrava na Folha o que via na TV.

Por meio de suas colunas, publicadas de 1970 a 1984, acompanhamos a história do veículo justamente quando se consolidava como o mais poderoso da indústria cultural. Ler “Helena Silveira Vê TV”—esse era o nome da sua seção— é, portanto, estudar também a história do Brasil e entender, por exemplo, a relação da liberdade das pernas de Sônia Braga no telhado com aquele país dominado pela censura militar.

Helena Silveira tinha 60 anos e era uma intelectual respeitada quando foi convidada a assumir a coluna de TV pelo jornalista Cláudio Abramo, que implementava mudanças na Redação da Folha e tinha a intenção de dar mais destaque aos temas culturais.

A escolha de um nome ligado ao universo literário para a crítica de televisão evidenciava a relevância que o veículo ganhava na cultura nacional, conforme analisou o pesquisador Pedro Paulo da Silva, que fez um mestrado na USP sobre a colunista.

“O nome de uma escritora como Helena ligado à crítica de TV certamente deu à televisão, na época, uma importância que ainda não tinha dentro do jornal. Além disso, ela era uma queridinha de intelectuais e da high society. Muita gente que não lia (ou dizia que não lia) crítica de TV passou a fazê-lo”, avaliou Pedro Paulo.

Helena contou, em seu livro autobiográfico, “Paisagem e Memórias”, de 1983, que, quando Abramo lhe propôs que escrevesse sobre televisão, achava que ela recusaria o convite. Mas a missão foi aceita “com prazer”: “O veículo com propostas ainda abertas, uma linguagem que se iria descobrindo todos os dias, me estimulava. Parecia-me que, no terreno literário, todas as fórmulas já tinham sido encontradas, enquanto a TV guardava todos os seus segredos, suas boas chaves”, narrou.

Nascida em São Paulo, em 9 de dezembro de 1911, Helena vinha de uma família influente no universo literário. O pai, Alarico Silveira, foi magistrado, jornalista e idealizador da Enciclopédia Brasileira. A irmã, Dinah Silveira de Queiroz, romancista, integrou a Academia Brasileira de Letras.

Seu tio Valdomiro Silveira foi um dos fundadores da literatura regional, e os primos Miroel Silveira, contista e teatrólogo, e Ênio Silveira, um dos principais editores do pensamento da esquerda no Brasil.

Helena passou por colégios tradicionais, entre eles o Sion, e fez curso no conceituado teatro parisiense Comédie-Française, mas não se graduou na faculdade. Seu primeiro texto publicado, segundo o pesquisador Pedro Paulo, foi o conto “Vida”, em 1940, na Folha da Manhã, jornal que, unificado em 1960 à Folha da Tarde e à Folha da Noite, daria origem à Folha de S.Paulo.

reprodução de página antiga de jornal
Em texto de estreia, Helena Silveira publicou o conto "Vida", com ilustração de Belmonte - Acervo Folha

A escritora passaria a colaborar com o periódico e lançaria, em 1944, o livro “A Humilde Espera”, coletânea de seus contos. Desquitada do primeiro marido, buscou emprego na Folha da Manhã e se tornou uma das primeiras mulheres da Redação.

“Meus colegas tinham um comportamento paternal, me tratavam como uma criança prodígio. Naquele mundo machista, eu entrava diariamente na Redação com minha farda de cronista, de longuinho, especiais para as festas que tinha que ir”, contou ela, que assumiu o posto de colunista social.

Queria escrever sobre literatura, mas o então diretor do jornal, Rubens do Amaral, lhe ofereceu a coluna social dizendo: “Esqueça tudo o que seus pais ensinaram, emburreça um pouco, fale de roupas, chapéus. Quanto mais tola, mais interessante será.” Helena tentava driblar a orientação. “Escrevia sobre a sociedade, mas procurava dar privilégio ao intelectual, esquecendo um pouco o chamado grã-fino.”

Escreveu em 1950, em parceria com o segundo marido, Jamil Almansur Haddad, a peça “No Fundo do Poço”. Inspirada em um famoso crime de São Paulo, de 1948, em que um professor da USP matou a mãe e as duas irmãs e as enterrou em um poço no fundo do quintal, a obra acabou censurada.

Em 1952, foi chamada de comunista por convidar Jorge Amado para um programa de entrevistas que comandava na TV Paulista. Em uma reunião com a direção que mais lhe pareceu um interrogatório, pediu demissão. “Não sou comunista, mas não admito inquéritos sobre minha ideologia”, disse.

De 1948 a 1952, fez para a rádio Excelsior, que pertencia ao grupo das Folhas, um programa feminino transgressor, ao não se limitar a receitas de bolo e a conselhos de beleza. “Misturava música a poesias, entrevistas sobre artes plásticas, literatura, mulheres nas profissões liberais, o que então era novidade”, contou na autobiografia.

A publicação de livros seguiu paralelamente ao trabalho no jornal. Entre outros, lançou, em 1954, a coletânea de contos “Mulheres, Frequentemente”, premiada pela Academia Paulista de Letras. Seu único romance, “Na Selva de São Paulo”, dialoga com a crônica e com o jornalismo ao retratar, com olhar crítico e a partir da experiência como colunista social, uma sociedade, conforme ela definiu, “que marchava com Deus pela família, mas uma sociedade hipócrita que nunca esteve com Deus”.

Em entrevista ao MIS sobre o escritor Monteiro Lobato, de quem foi amiga, Helena assim se apresentou: “Uma jornalista que engoliu a escritora, com muito pesar meu”.

A partir de 1970, na fase como crítica televisiva, houve períodos em que publicava colunas de página inteira e, em algumas épocas, até cinco vezes por semana. De 1974 a 1976, assinou, além de “Helena Silveira Vê TV”, a coluna “Videonário”. O estilo dos dois espaços variou, intercalando a crítica da programação com informações dos bastidores e perfis de famosos.

Sua notoriedade no meio artístico a levou à criação do Troféu Helena Silveira, oferecido a profissionais e programas de TV de 1971 a 1973.

reprodução de página de jornal antiga
Coluna Videonário, de Helena Silveira, avaliava as novidades na televisão brasileira - Acervo Folha - 2.abr.1977

O título “Helena Silveira Vê TV” joga luz sobre o prestígio que seu nome emprestava ao debate a respeito da televisão, mas também ao fato de ela se colocar como telespectadora, evitando uma posição autoritária. O tom afetivo dos textos lhe rendeu críticas, por ser supostamente benevolente com a televisão.

Um estudo sobre suas colunas, no entanto, feito pela professora Maria Cristina Castilho Costa, da Escola de Comunicações e Artes da USP, apontou que Helena, com “respeito pela inteligência do espectador”, ao falar das telenovelas, o principal produto da televisão, preocupava-se “com a coerência e a verossimilhança, com a informação procedente e bem pesquisada” e era atenta a todas as etapas da produção: “A escolha do tema, a construção das personagens, a escalação dos atores, o desenvolvimento dos diálogos, o desenrolar das tramas, a elaboração dos cenários”, e até com a maquiagem.

Condenava o “carioquismo” das novelas, sublinhou Maria Cristina, e a “visão estereotipada do mundo, como ricos que tomam café́ da manhã com suco de laranja ou empregados que chamam a patroa de madame”. A professora ressaltou o fato de Helena defender que a novela tivesse um papel social, de conscientização do público.

Vovó era uma mulher de muita personalidade nos seus posicionamentos políticos e feministas, e de um humor inteligente

João Paulo Teixeira Leite

neto de Helena Silveira em entrevista à Folha

A colunista se mostrava conectada a temas como o feminismo e a abertura política. No primeiro dia de 1977, por exemplo, a manchete de sua coluna foi “77 sob ameaça da Censura”. Nessa edição, condenou vetos impostos à televisão pela ditadura militar em 1976, como a uma apresentação do balé Bolshoi, por ser da comunista União Soviética, e à novela “Despedida de Casado”, em razão de abordar o divórcio.

Em 1983, fez parte de uma comitiva de mulheres que foi a Brasília defender o voto direto. Esse seu traço engajado ficou na memória de seu neto João Paulo Teixeira Leite, 62: “Vovó era uma mulher de muita personalidade nos seus posicionamentos políticos e feministas, e de um humor inteligente”, conta ele, saudoso da “avó coruja”.

Ainda que antenada à atualidade, sempre “moderna, arrojada e com cabeça de moça, apesar da idade”, na definição de Helô Machado, 74, sua amiga e ex-editora da Ilustrada, Helena não passou incólume ao conflito de gerações que se estabeleceu na Folha na década de 1980.

Ela já tinha mais de 70 anos quando uma equipe de jovens jornalistas foi alçada a postos de chefia e implementou uma série de mudanças editoriais no jornal, entre elas a valorização da objetividade e da concisão dos textos.

Em 1984, a Folha consolidava seu prestígio a partir da cobertura das Diretas Já, e Helena, 40 anos de casa, adoeceu de câncer. Helô Machado foi visitá-la no hospital. “Peguei na sua mão e comecei a falar do jornal, contar histórias engraçadas da Redação. Ela ficou olhando para mim, até que deu um suspiro e morreu."

Helena Silveira (1911-1984)

Jornalista e escritora paulistana, estreou nas páginas da Folha da Manhã em outubro de 1940 com o conto "Vida". Foi uma das primeiras mulheres a trabalhar na Redação do jornal, em 1944, quando se tornou responsável pela coluna social. Lançou livros como “Mulheres, Frequentemente” e “Na Selva de São Paulo”. A partir de 1970, destacou-se pela crítica minuciosa da televisão, que se consolidava no Brasil, em suas colunas "Helena Silveira vê TV" e "Videonário".

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