Dona Wal decifrava entrevistas e foi pioneira no antitabagismo na Folha

Ela trabalhou no jornal durante 50 anos e tinha como função degravar fitas

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São Paulo

A cena é famosa. Reunidas no auditório do prédio da Folha em maio de 2010, dezenas de jornalistas, a maioria com menos de 40 anos, acompanhavam empolgadas o anúncio de mudanças profundas no jornal, detalhadas pelo recém-empossado editor-executivo, Sérgio Dávila.

Até que Walkyria Pereira Leite, 79, pediu a palavra para desafinar do coro autocongratulatório. Seu alvo era a estrela vermelha na capa do jornal, representando a extinta Folha da Tarde, mas que para ela lembrava demais o PT.

Walkyria Pereira Leite durante debate no auditório da Folha em 2010, conforme registrado no documentário "O Jornal do Futuro" - Reprodução

“A Folha está popularesca com essa coisa aí, está horrorosa. Sugiro que troque aquela estrela vermelha acintosa e ponha uma estrela amarela”, bradou.

O momento está registrado no documentário “O Jornal do Futuro”, produzido pelo jornal para marcar aquela reforma gráfica e editorial.

Não havia ninguém melhor na Redação da Folha para sair do script do que Dona Wal, como era chamada por todos. O desabafo na presença dos colegas revela, além do antipetismo que sempre foi uma marca, o sentimento maternal com o jornal ao qual ela dedicou mais de 50 anos de sua vida.

Sua função era degravadora, um serviço hoje extinto. Sentada num canto da Redação, estava sempre com fone no ouvido, transcrevendo eventos promovidos pelo jornal ou entrevistas que repórteres preguiçosos ou sem tempo haviam feito.

Com décadas de prática em datilografia, era um dínamo e tinha uma relação inusitada com os áudios, xingando em voz alta entrevistados e entrevistadores que falassem baixo ou rápido demais.

“O que sempre me chamava a atenção nela era o comprometimento com o trabalho: missão dada era missão cumprida. E também a rapidez para tirar aquelas fitas e o espírito aguerrido, até um tanto folclórico, de chegar a literalmente brigar com o gravador”, diz Tereza Rangel, que foi coordenadora da Agência Folha nos anos 1990, unidade do jornal à qual Walkyria estava vinculada.

Extraoficialmente, ela tinha outras tarefas. Uma delas era ser uma espécie de porto seguro para os jornalistas iniciantes e, principalmente, a equipe de auxiliares da Redação. A generosidade havia sido burilada após uma vida de solteira, cuidando de quatro irmãos mais novos e uma legião de sobrinhos.

“Ela tinha o jeitão mal-humorado, mas estava sempre preocupada conosco. Às vezes, a gente chegava cabisbaixo e ela ia logo perguntando qual era o problema. Queria ajudar”, diz Marivaldo Carvalho, que trabalhou como auxiliar na Redação e atualmente é assessor de imprensa.

Um dos seus hábitos era pagar lanches para os mais chegados, mesmo que fosse apenas um pão com ovo.

Corintiana fanática, era corneteira de mão cheia, sempre insatisfeita com jogadores, treinador e diretoria, não importava se o time ganhasse ou perdesse.

Nada que se comparasse, no entanto, à sua militância antitabagista, o que fez dela uma pioneira nesse campo. Numa época em que acender cigarros na Redação era comum, soltava impropérios nada discretos direcionados a um fumante flagrado, com o objetivo, quase sempre atingido, de expulsá-lo das redondezas.

Ao se aposentar, em 2011, ganhou uma placa de homenagem do então diretor de Redação, Otavio Frias Filho (1957-2018), gesto que a deixou realizada.

Para quem havia convivido com figuras lendárias como Boris Casoy, Claudio Abramo e Clóvis Rossi, era o reconhecimento de que um grande jornal também é feito por uma funcionária incansável tentando entender o que um entrevistado de péssima dicção havia sussurrado ao gravador.

WALKYRIA PEREIRA LEITE (1931-2015)

Trabalhou durante 50 anos na Folha, como secretária, datilógrafa e encarregada de degravar entrevistas e eventos do jornal. Formou-se em direito, mas nunca exerceu a profissão. Aposentou-se em 2011 e morreu em novembro de 2015, aos 84 anos, após complicações decorrentes de um coágulo na cabeça causado por uma queda​.

As funções do jornalismo que não existem mais

Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) declarou que, assim como foi extinta a função do datilógrafo, a imprensa também iria acabar. É verdade que muitos ofícios antes essenciais para o fechamento de um jornal deixaram de existir, mas a declaração do mandatário ignora que é justamente nestas transformações que o jornalismo se renova e, portanto, sobrevive sempre atualizado. Afinal, não é por que não temos mais leiteiros que deixamos de tomar leite.

Essas funções extintas no jornalismo, em grande parte, foram substituídas devido a avanços tecnológicos. Outras se transformaram muito com esses avanços. O diagramador, por exemplo, que antes desenhava o chamado "boneco" do jornal com lápis e papel, hoje conta com softwares específicos para isso.

Conheça abaixo algumas destas funções que se extinguiram ou se transformaram em outras:

Linotipista
Profissional responsável por operar o linotipo, uma máquina que permitia compor linhas inteiras do texto de uma só vez, fazendo uma composição mecanizada, ou "em bloco", o que deu maior rapidez à produção do jornal.

foto em preto e branco de máquinas antigas, grandes e de metal
Oficina de linotipos da Folha no final da década de 1940 - Folhapress

Com o surgimento da tecnologia de impressão offset, os linotipos caíram em desuso e, gradualmente, a profissão de linotipista foi desaparecendo.

Tipógrafo
Hoje um exercício majoritariamente digital e ligado ao design gráfico, antes os tipógrafos operavam as prensas, como a famosa criada por Johannes Gutenberg, que permitiu o surgimento da impressão em massa. Cada letra possuía o seu próprio molde de ferro e os tipógrafos eram os responsáveis por "montar o lego" nas páginas do jornal.

Degravador
Profissional que transcrevia gravações em áudio de entrevistas e eventos, auxiliando jornalistas na composição da reportagem. Hoje, os próprios repórteres exercem essa função.

Perfurador e fotocompositor
Quando um texto ficava pronto, o perfurador era o responsável por digitá-lo em uma máquina chamada monotipo, gerando uma espécie de "fita" (como a da fita cassete) do texto. O fotocompositor ficava com a etapa seguinte, a de "revelar" o texto, como se fosse uma fotografia, inserindo a fita na máquina fotocompositora. Essas funções foram substituídas pela impressora.

Revisor e copidesque
Não é que as funções de revisor de textos e copidesque tenham deixado de existir, mas passaram a fazer parte das atribuições dos repórteres, redatores e editores. Os revisores eram profissionais contratados especificamente para adequar os textos à norma gramatical; os copidesques atentavam para questões de estilo e semântica, como a coesão.

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