'Mudou a textura da vida', disse Updike sobre 11 de Setembro à Folha

Escritor norte-americano viu, pela janela, as torres desabarem

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

John Updike (1932-2009), um dos mais importantes nomes da literatura norte-americana do século 20, foi testemunha ocular dos atentados de 11 de setembro de 2001, que completa 20 anos neste sábado (11). "Foi como assistir a um filme. Um filme muito ruim", disse à Folha três dias após o ataque terrorista.

Updike escreveu romances como "As Bruxas de Eastwick" (1984) e a tetralogia Coelho, formada por "Coelho Corre" (1960), "Coelho em Crise" (1971), "Coelho Cresce" (1981) e "Coelho Cai" (1990), que lhe rendeu o Prêmio Pullitzer na categoria ficção.

Sua obra se destaca por retratar a classe média dos EUA, em especial aquela de regiões menos cosmopolitas, como do estado da Pennsylvania, onde nasceu.

homem branco de cabelos grisalhos sorri e gesticula
O escritor norte-americano John Updike em visita a São Paulo em 1997 - Luiz Carlos Murauskas - 18.mai.1997/Folhapress

A entrevista que concedeu à repórter Francesca Angiolillo não estava prevista. À época redatora da Ilustrada, a jornalista havia falado com Updike um mês antes sobre "Gertrudes e Cláudio", romance que ele estava lançando. Diante dos acontecimentos que iriam moldar as primeiras décadas do século 21, ela resolveu recorrer outra vez ao número de telefone que anotara em sua agenda.

"Ele não ficou nada feliz, reclamou da cara de pau de ligar para a casa dele", conta. A semana após o 11 de Setembro, ela lembra, foi aquela em que mais trabalhou em seus 20 anos de carreira —até a chegada da pandemia do coronavírus.

"Respirei fundo e disse: 'O senhor já foi jornalista e sabe como é'. Nesse momento, ele mudou de tom e me deu a entrevista", recorda-se a repórter.

Na conversa, Updike descreveu o "silêncio perturbador" que caiu sobre Nova York depois do ataque terrorista, o maior da história dos EUA, e comentou que a vida, nem a dele nem a de ninguém, jamais seria a mesma.

A entrevista volta agora a ser publicada como parte da série Entrevistas Históricas, que celebra os 100 anos da Folha recuperando conversas marcantes da história do jornal.

"Silêncio nos EUA perturba", diz escritor Updike

Francesca Angiolillo

O escritor John Updike, 69, conta que deixou de morar em Nova York há algum tempo "porque era muito cara". Hoje vive nos arredores de Boston (nordeste dos EUA), mas por uma coincidência, na terça, esteve próximo do atentado ao World Trade Center.

O autor americano viu, pela janela, os edifícios desabarem. Updike tinha ido, com a mulher, visitar o filho dela, que mora no bairro do Brooklyn, um dos cinco que compõem Nova York —ao sul da cidade, mas fora da ilha de Manhattan, onde houve o ataque.

Updike, que muitas vezes se debruçou sobre a história dos EUA —como faz em "Na Beleza dos Lírios" ou na tetralogia protagonizada por Harry "Coelho" (Rabbit, no original)—, acredita que os valores americanos ficarão de pé.

Apesar de "chocado", pensa que teve "sorte". "Acho que não conheço ninguém que pudesse estar lá", disse à Folha, por telefone. Mas sorte mesmo, completa, tem o Brasil. "Gosto muito de seu país. Vocês deveriam ficar felizes por não terem esse tipo de coisa."

Como um ficcionista, como o sr. vê os fatos de terça, que foram além do imaginado por qualquer ficção?
Como você diz, foi além dos limites da ficção. Eu estava no Brooklyn por acaso —fomos visitar o filho da minha mulher— e tive uma visão bastante clara do colapso dos edifícios. Foi como assistir a um filme, um filme muito ruim.

Minha vida —e não só ela, mas a vida do país— jamais será a mesma. Qualquer país que tenha liberdade, e o nosso tem num alto grau, está sujeito a isto. Um fato destes nos faz perder a liberdade, por exemplo, de entrar em um avião sem medo.

A paranóia tantas vezes atribuída aos americanos e retratada, mesmo que indiretamente, em livros seus, como "Na Beleza dos Lírios" [1997, Companhia das Letras], parece desmedida hoje, depois do ataque?
O que aconteceu faz muito do que escrevo parecer pequeno. Não tenho tratado da paranóia nacional como DeLillo [Don DeLillo, norte-americano, autor de "Submundo", Companhia das Letras, 1999].

Eu nunca acreditei em teoria da conspiração. Acho que esses são assuntos de política internacional muito grandes para representar em ficção. Mas acho que o efeito é nos sentirmos menos seguros —ou menos arrogantes, se quiser.

Mas seus livros, especialmente a tetralogia do personagem Coelho, se ligam a um retrato do "american dream". Como o sr. acha que os ideais sociais de seu país passarão a ser encarados agora?
Acho que não vamos desistir deles. A maior parte dos americanos permanece pragmática. Andando pela cidade, senti que é uma sociedade que vale a pena defender.

Minha mulher e eu tentamos doar sangue, mas havia uma multidão de gente fazendo o mesmo nos hospitais. Há um espírito de solidariedade, uma vontade de fazer algo concreto, apesar de nos sentirmos vulneráveis em nossa liberdade.

Comigo houve algo estranho. Vivo num subúrbio, a 30 milhas [cerca de 48 km] de Boston, por onde costumam passar aviões; estamos perto de um aeroporto. Mas, nos últimos dias, não houve aviões. É um silêncio perturbador. Mudou a textura da vida.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.