Ódio e fanatismo invadiram Copacabana

Crônica de Rubem Braga de 1958 seria presságio de bairro tomado por mar de gente individualista?

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Alexandre Kalache

Médico gerontólogo, presidente do Centro Internacional de Longevidade no Brasil (ILC-BR)​

O Rio dos anos 1950 e 1960 se caracterizou por um gênero literário que retratava a cidade no seu dia a dia. Um fato mundano se transformava em crônicas que eu, adolescente, consumia avidamente. Os cronistas seriam hoje blogueiros.

Foram muitos e, com frequência, tinham origem mineira. Escreviam diariamente nos jornais. De todos, meu preferido era Rubem Braga, capixaba, mas que viveu em Minas Gerais na juventude.

Creio que o mar sempre fascinou os mineiros e, portanto, o Rio os fascina. E foi inspirado no mar que Rubem Braga escreveu uma de suas mais conhecidas crônicas.

Uma multidão de pessoas vestidas de verde e amarelo com algumas palmeiras no meio e o mar ao fundo
Manifestantes bolsonaristas se reúnem na altura do posto 5 em Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro - Ítalo Nogueira 7.set.2021/Folhapress

Foi em 1958. Eu tinha então 13 anos e, tendo nascido e crescido em Copacabana, a crônica me inquietou porque Braga pressagiava a destruição do bairro pelo mar. Um castigo pelas perversões, pela indiferença face à iniquidade, pelo dia a dia individualista, libertino, pecaminoso. Alguns trechos:

“Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas”.

“Sem Leme, quem te governará? Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas (...). Grandes são teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual muralha desafiando o mar; mas eles se abaterão (...). E os escuros peixes nadarão os teus porões e a vasa fétida das marés cobrirá sua face (...) Canta a tua última canção, Copacabana.”

Em 7 de setembro de 2021, 63 anos anos depois, novamente me inquietei. Muito. E me veio a crônica à cabeça. Seria aquilo que acompanhei do alto, incrédulo, o que Braga se referia e profetizava? A destruição do bairro não pelo mar, mas por uma massa de gente fanatizada, inebriada, possessa, destilando ódio, pregando destruição.

Teria sido a crônica de Braga uma metáfora? Um mar de gente não azul como o de Copacabana, mas verde-amarelo ufanista, triunfante. Teria "Ai de Ti, Copacabana" se tornado uma visão apocalíptica e distópica, um "Ensaio sobre a Cegueira" como se Saramago observasse tudo de uma varanda?

Seriam os peixes escuros invadindo os porões um presságio de novos anos de tortura clamados pela massa enfurecida? E a vasa fétida das marés outros anos de chumbo?

Será que o que Braga chamou de libidinoso são a falta de empatia e de solidariedade, e a incapacidade de experimentar o luto de um país frente à maior crise sanitária de sua história? Luto que, afinal, é o preço que se paga por amarmos e de que somos poupados quando amor não há?

Teria eu realmente ouvido as palavras de ordem carregadas de ódio e fúria? Teria George Orwell antecipado em “1984”, quando fala da "novilíngua", a distorção do significado das palavras –como liberdade, democracia, corrupção, honra?

​Sei bem que Orwell profetizava as fake news. Mas quando as palavras perdem seu sentido, perdemos o Leme –aquele pedaço de Copacabana, também com duplo sentido.

A orgia de uma festa travestida, de uma Copacabana antes alegre, ensolarada, agora sombria, em que o samba deu lugar a marchas militares ou hinos transformados em demonstração de nacionalismo, de segregação e ameaças.

Serão estas, ai de ti, as últimas canções que cantarás, Copacabana?

SEÇÃO DISCUTE QUESTÕES DA LONGEVIDADE

A seção Como Chegar Bem aos 100 é dedicada à longevidade e integra os projetos ligados ao centenário da Folha, celebrado neste ano de 2021. A curadoria da série é do médico gerontólogo Alexandre Kalache, ex-diretor do Programa Global de Envelhecimento e Saúde da OMS (Organização Mundial da Saúde).

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