Envelhecer em país estrangeiro é fenômeno cada vez mais comum

Globalização exige políticas públicas que contemplem idosos imigrantes no Brasil

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Lilian Liang

Diretora de Redação da revista Aptare e coordenadora de mídia especializada em envelhecimento do Centro Internacional de Longevidade (ILC) no Brasil

“Eu não conhece ela! Ela é do máfia! Sai do meu frente!” (sic), gritava a senhora P, com sotaque chinês e voz quase rouca, para os carros que aguardavam o farol abrir.

Ela se referia a mim. Como falo chinês, fui chamada pela Unidade Básica de Saúde (UBS) de seu bairro para ver se conseguia extrair alguma informação sobre ela.

Há algumas semanas, ela tinha agredido um vizinho, também idoso, que teve de ser hospitalizado e registrou um boletim de ocorrência contra ela.

A equipe da UBS foi acionada para entender a situação e identificar formas de ajudá-la. As primeiras visitas não foram bem-sucedidas. Ela enxotava os profissionais, se recusava a falar. A esperança era de que fosse diferente com alguém que falasse chinês.

homem idoso usa chapéu e caminha por calçada com postes de luz vermelhos e redondos, de estilo oriental
Imigrante caminha pelo bairro da Liberdade, em São Paulo - Bruno Santos - 12.ago.2019/Folhapress

A senhora P é uma idosa bem conhecida no bairro onde mora, na zona sul de São Paulo. Todas as manhãs ela se posiciona na frente de sua casa, segurando placas com frases desconexas, escritas num português hesitante, misturando Deus, amor e máfia.

Às vezes, aproxima-se dos carros parados e denuncia a crueldade da máfia, dizendo que só Deus é amor. Os vizinhos contam que ela já agrediu outras pessoas. Vive só e há quem diga que tinha marido e filho. Ao que parece, ela acumula muitos gatos em casa.

Acompanhei a assistente social na visita numa quarta-feira. Assim que percebeu que nos aproximávamos, a senhora P começou a juntar seus cartazes e se dirigir para dentro.

Eu havia sido alertada de que ela poderia ficar agressiva, então procurei manter uma certa distância, fazendo perguntas simples em chinês. Meu objetivo era descobrir seu nome completo e sua data de nascimento, para que a equipe da UBS rastreasse um mínimo de informações.

Ela foi perdendo a paciência e passou a me acusar de fazer parte da máfia para quem quisesse ouvir. E de mim exigia: “Se você tem amor no coração, sai do meu frente!” (sic)

O problema, portanto, não era o idioma, mas sim um distúrbio mental não diagnosticado, que coloca em risco seus vizinhos e ela própria. Diante de nossa insistência, ela empilhou caixas na frente do portão, formando uma espécie de barricada, e sumiu casa adentro. Não conseguimos nenhuma informação para ajudá-la. Foi a última vez que a vi.

Ao constatar tamanha vulnerabilidade, foi difícil não fazer um mea culpa sobre o papel que nós, como comunidade de imigrantes, temos desempenhado em relação aos nossos idosos.

Aquela idosa poderia ser minha mãe. Quem é imigrante sabe: é em nossa comunidade que encontramos boa parte da ajuda —material e emocional— fora de nosso país de origem. Precisamos desse auxílio quando jovens, dependemos ainda mais dele na velhice.

Envelhecer num país estrangeiro é um fenômeno cada vez mais comum. O Brasil registrou quase 800 mil imigrantes entre 2010 e 2018, segundo dados do OBMigra (Observatório das Migrações Internacionais).

Como eles envelhecerão aqui? A globalização demanda a formulação de políticas públicas que contemplem a crescente população de idosos imigrantes no Brasil e envolvam uma parceria sólida entre as autoridades competentes e as comunidades de imigrantes que os mantêm conectados às suas origens.

Essa combinação de esforços pode ser o que faltava para que a senhora P fosse notada. Ela segue, infelizmente, sendo uma incógnita, vulnerável e invisível.

SEÇÃO DISCUTE QUESTÕES DA LONGEVIDADE

A seção Como Chegar Bem aos 100 é dedicada à longevidade e integra os projetos ligados ao centenário da Folha, celebrado neste ano de 2021. A curadoria da série é do médico gerontólogo Alexandre Kalache, ex-diretor do Programa Global de Envelhecimento e Saúde da OMS (Organização Mundial da Saúde).

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.