Esta terra ainda vai se tornar um imenso Portugal

País virou símbolo da revolução da longevidade após universalização da saúde e ênfase no ensino público

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Alexandre Kalache

Médico gerontólogo, é presidente do Centro Internacional da Longevidade e ex-diretor do Departamento de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS)

Acabo de chegar a Lisboa. Após quase dois anos em confinamento rigoroso, é minha primeira viagem. Fico dois dias aqui e sigo para Madri para mais dez, cumprindo a quarentena até meu destino, Londres.

Estou ansioso para chegar lá, abraçar e beijar meus filhos e netas e conhecer o Dylan, meu neto nascido em plena pandemia. O trabalho continuará em modo remoto, afinal, já não importa onde estejamos, para nós, os privilegiados do mundo virtual, basta estarmos atentos à diferença de fuso horário.

Minha primeira visita a Portugal foi há 45 anos. Quantas mudanças! Sento-me na varanda de um café longe dos pontos turísticos, observando o ir e vir de gente.

fotografia colorida de dia de sol, à beira do rio tejo, com águas azul escura; às margens, pessoas estão sentadas ou em pé observando uma torre antiga de pedra branca
Turistas visitam a Torre de Belém às margens do rio Tejo, em Lisboa - Lalo de Almeirda - 7.nov.2017/Folhapress

Conheci Portugal ainda muito pobre. A expectativa de vida ao nascer era a mais baixa da Europa ocidental, 67 anos. Em 2019, subiu para 82 anos e se tornou uma das mais altas.

No Portugal que primeiro visitei, grassava tuberculose e a mortalidade infantil era a mais alta dos países do OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). As marcas ainda podem ser observadas hoje.

Olho de novo à minha volta. Os mais velhos, baixinhos, atarracados. Seus netos, empertigados, altos e fortes. Nenhuma diferença genética que explique, os mais jovens apenas não sofreram na infância e na adolescência a subnutrição como seus avós.

Conheci um Portugal que exportava gente. Naquela época, na Suíça, na França e na Alemanha, eram os imigrantes portugueses que nos serviam em restaurantes e hotéis ou limpavam as ruas e toilettes públicos. Migravam também para o Canadá, para os Estados Unidos. Até o Brasil ainda os atraía.

As taxas de analfabetismo absoluto e funcional se mantém presentes entre os mais idosos, que tinham com frequência 8, 10 ou mais filhos. Hoje, a taxa de natalidade está muito abaixo da reposição. Falta gente. O país é agora um destino cobiçado pelos imigrantes internacionais, que digamos nós, brasileiros.

Portugal retrata a revolução da longevidade. Para ela, contribuíram a ênfase no ensino público, a implementação de um sistema universal de saúde (moldado, como o nosso combalido SUS, no sistema britânico), o combate à desnutrição e a modernização com a entrada na União Europeia. E às vacinas que antes não existiam.

Enquanto tomo meu expresso com um pastel de nata de comer ajoelhado, observo três idosos que, quase certamente, foram vítimas da poliomielite. São da minha geração, quando ainda não existiam as vacinas Salk e Sabin. Era pura roleta russa: todos se infectavam, alguns morriam, a maioria passava ilesa enquanto outros desenvolviam a temida e então chamada paralisia infantil.

Outras vacinas se somaram, coqueluche, rubéola, pneumococo, gripe, meningite, hepatite A e B, HPV (vírus papiloma), varicela (herpes zoster). E há ainda quem negue os benefícios das vacinas, como constatamos hoje no Brasil com a Covid-19. Até quando perdurarão o negacionismo e a falta de letramento científico?

Em 1973, Chico Buarque compôs "Fado Tropical", com um trecho declamado pelo cineasta e escritor nascido em Moçambique e radicado no Brasil Ruy Guerra. Eles driblavam a censura dos anos de chumbo e antecipavam a Revolução dos Cravos do ano seguinte.

Na letra, vaticinavam: "Ai, esta terra ainda vai cumprir o seu ideal. Ainda vai tornar-se um imenso Portugal". Ora pois, que assim seja!

SEÇÃO DISCUTE QUESTÕES DA LONGEVIDADE

A seção Como Chegar Bem aos 100 é dedicada à longevidade e integra os projetos ligados ao centenário da Folha, celebrado neste ano de 2021. A curadoria da série é do médico gerontólogo Alexandre Kalache, ex-diretor do Programa Global de Envelhecimento e Saúde da OMS (Organização Mundial da Saúde).

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