História de Cunha Rêgo parece ter saído de um livro de aventuras

Exilado no Brasil, jornalista português foi dono de uma escrita elegante, irônica e erudita

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Este texto foi escrito seguindo o uso corrente da língua portuguesa em Portugal

João Pereira Coutinho
Lisboa

Sempre que Otavio Frias Filho (1957-2018) falava de Victor Cunha Rêgo, seus olhos se iluminavam. Testemunhei o fenómeno algumas vezes e o próprio Otavio, em prefácio que escreveu para um dos livros de Cunha Rêgo publicados em Portugal (“Liberdade”, 2004, posteriormente integrado na coletânea definitiva “Na Prática a Teoria é Outra”), deixou uma explicação para o fato:

“Minha convivência com Cunha Rêgo [em S. Paulo] foi pouca e esporádica, mas ocorreu naquela fase da vida –fim da adolescência, começo da juventude –em que estamos muito permeáveis a influências e as memórias se fixam de modo indelével”.

homem branco com camisa branca e gravata escura fina fala ao telefone e segura o cigarro
O jornalista Victor Cunha Rêgo no início da década de 1970, quando trabalhava para a Folha de S.Paulo - Ivonne Felman da Cunha Rêgo

De facto, como não admirar aquele homem cuja biografia parecia ter saído de um livro de aventuras –ou, ainda nas palavras de Frias Filho, alguém que “deixou a marca de uma inteligência imaginativa, surpreendente, barroca, avessa a todo esquematismo ou vulgaridade”?

Nascido em Oeiras, perto de Lisboa, corria 1933, Victor Cunha Rêgo foi jornalista, editor e combatente de várias ditaduras –a portuguesa, a brasileira e a pró-soviética que os militares portugueses procuraram instaurar em Portugal depois da Revolução dos Cravos (1974). “Liberdade” não foi apenas o título de um livro, mas o lema de uma vida.

Exilou-se no Brasil em 1956, por causa do Estado Novo de Salazar, e do Brasil acabaria por partir, em 1964, para a Argélia, Iugoslávia e Itália, por causa da ditadura militar brasileira. Voltaria ao Brasil em 1968, onde ficou até 1974, altura em que regressou a Portugal para participar na construção da democracia lusa.

Foi secretário de Estado adjunto do premiê Mário Soares e embaixador em Madrid entre 1977 e 1980. Dirigiu a televisão pública portuguesa (RTP), foi diretor de vários jornais e, no ano da morte, em 2000, era consensualmente tido como o mais importante colunista do país.

Nessa carreira, o Brasil teve uma importância capital e os seus textos para os jornais Última Hora, O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo, onde chegou pela mão de Cláudio Abramo, são exemplares no conteúdo e no tom: dono de uma escrita elegante, irónica e erudita, nenhum tema da agenda internacional era território estranho para Cunha Rêgo.

Nesta Folha, os seus textos sobre Salazar ainda hoje impressionam pela sua capacidade de análise psicológica e moral: Salazar, aos olhos de Cunha Rêgo, era simultaneamente o opressor de um povo e a mais medíocre expressão desse povo nas suas virtudes e vícios.

“Sob certos aspectos”, escrevia o colunista em 1968, “esse homem que encarna o Anti-Povo tem muito do homem médio português, muito de um Afonso Henriques [o primeiro rei de Portugal] refinado por séculos de experiência absolutista”.

A mesma argúcia analítica pode ser encontrada nos seus comentários sobre a China de Mao, a invasão soviética da Tchecoslováquia e as “almas mortas” de Cuba.

Mas a prosa de Cunha Rêgo não se ocupava apenas com os temas mais graves. Nesta Folha, as suas meditações sobre futebol rivalizam, em paixão e dramatismo, com as prosas de Nelson Rodrigues. Assim escrevia ele sobre a final da Copa de 1970:

"É possível falar de música? O Brasil foi Wagner: coros e metais. Logo de início o coro dos marinheiros do 'Navio Fantasma': Brito, Gerson, Pelé (...) Mas no seu todo o jogo foi 'Lohengrin': a estupefação e o assombro, o cortejo irresistível em direção à catedral do gol”.

Além disso, como não sorrir com as suas meditações montesquianas sobre a forma como a geografia influencia o estilo dos times? "Cada terra com seu uso, cada futebol com seu fuso", escrevia Cunha Rêgo em 1970. E acrescentava:

"A regra é a de que nas cidades-prazer ou nas zonas vincadamente regionalistas (sobretudo se se trata de portos de mar) ele se exprime pelo refinamento da imaginação ou na supremacia do espetáculo ao esquema e à capacidade organizativa. Nas cidades-trabalho, a malícia ou o 'coração' dão lugar à capacidade atlética e à organização.”

Exceção a essa regra seria o Santos de Pelé, que “realizou o milagre de fazer uma síntese entre as virtudes do futebol carioca e do futebol paulista.”

Esses e outros textos podem hoje ser lidos na magistral coletânea de crônicas “Na Prática a Teoria é Outra: Escritos 1957-1999” (ed. Dom Quixote, com organização de Vasco Rosa e André Cunha Rego), um volume de quase 900 páginas que merecia publicação no Brasil, país que amou até o fim.

Victor Cunha Rêgo (1933 – 2000)

Nascido na cidade de Oeiras, em Portugal, formou-se em direito na Universidade de Grenoble (França) e exilou-se no Brasil em 1956. No país, trabalhou em veículos como Última Hora, O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo, onde foi editorialista e responsável pela seção de assuntos internacionais de 1969 até 1973. Em Portugal, foi diretor do Diário de Notícias, A Tarde e Semanário. Autor dos livros “Liberdade”, “Os Dias de Amanhã” e “Na Prática a Teoria é Outra”.

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