Ser estrangeiro dentro do seu próprio país

Em um país desigual e continental, como o Brasil, milhões envelhecem longe da terra natal

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Alexandre Kalache

Médico gerontólogo, presidente do Centro Internacional de Longevidade no Brasil (ILC-BR)​

Nesse espaço, na semana passada, Lilian Liang nos brindou com um texto potente, chamando a atenção para o envelhecer em um país estrangeiro, uma tendência global que se acentuará no decorrer das próximas décadas.

Segundo o Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas, no final de 2019 o número de imigrantes internacionais era de 272 milhões, 3,5% da população global, comparados com 2,8% em 2000. Metade deles se fixou em dez países.

Os EUA encabeçam a lista. Contabiliza 51 milhões, seguidos da Alemanha, Arábia Saudita, Rússia e Reino Unido. No entanto, a Europa como um todo abriga 82 milhões, quase um terço do total. Tais números só levam em conta os imigrantes legais, ou seja, o número real é muito maior.

A Índia é o país natal de 18 milhões de imigrantes, o maior número, seguida do México, com 12 milhões. Em seguida, China, com 11 milhões; a Rússia, 10; e a Síria, 8 milhões.

No entanto, esse cenário irá se transformar nas próximas décadas.

As populações dos países mais pobres, de onde partem a maioria dos imigrantes, irão aumentar rapidamente. Estima-se que a Nigéria chegará ao final do século com 791 milhões de habitantes, tornando-se o segundo mais populoso do mundo, tendo à frente apenas a Índia, com 1,1 bilhão.

O vizinho Paquistão, com 248 milhões, também estará entre os cinco mais populosos. Ao mesmo tempo, 23 países terão suas populações reduzidas à metade, incluindo Japão, Espanha, Itália e Portugal. Não só populações bem menores, mas muito mais envelhecidas.

As pressões migratórias naturalmente irão aumentar. Alguns países verão suas populações incharem enquanto as de outros, minguarão.

Cartões postais com selos
Fluxos imigratórios e envelhecimento da população vão alterar cenário global ao longo do século 21 - Thea Severino

No entanto, quando falamos de imigrantes, o que nos vem à cabeça são jovens, sempre dispostos a fazer trabalhos que não interessam aos moradores locais. Mas eles envelhecem. E muitos não chegam à velhice com as condições que esperavam desfrutar quando partiram em busca de sonhos.

É então, na velhice ou próximo dela, que, nostálgicos, voltam a um passado glorificado. Alguns até retornam —e então percebem que envelhecerão em um país estrangeiro que acontece ser aquele em que nasceram. Frustram-se.

Em um país de dimensões continentais, como o Brasil, há um outro fenômeno pouco investigado ou mesmo discutido. Milhões de brasileiros das regiões mais pobres partiram de seus locais de origem também em busca de sonhos e oportunidades.

Com frequência, igualmente se frustram, deparando-se com preconceitos. Deixaram para trás os familiares idosos, que não podem cuidar fisicamente por estarem a milhares de quilômetros. Tampouco prover auxílio financeiro, pois meramente sobrevivem nos grandes centros, carentes de qualificações que lhes permitam competir no mercado formal de trabalho.

São os que nos prestam serviços, que mantêm as grandes cidades funcionando, que terminam sobrevivendo em favelas. Aos filhos deles, é oferecido um ensino público precário, medíocre.

Eles também envelhecem em um país estrangeiro, que acontece de ser aquele onde nasceram, envelhecendo longe da cultura que os moldou nos primeiros anos. Não seria desejável, imperativo mesmo, se fôssemos todos mais solidários, acolhedores e receptivos?

SEÇÃO DISCUTE QUESTÕES DA LONGEVIDADE

A seção Como Chegar Bem aos 100 é dedicada à longevidade e integra os projetos ligados ao centenário da Folha, celebrado neste ano de 2021. A curadoria da série é do médico gerontólogo Alexandre Kalache, ex-diretor do Programa Global de Envelhecimento e Saúde da OMS (Organização Mundial da Saúde).

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