Ainda estamos no século 19

Mais de 130 anos após Lei dos Sexagenários, continuamos sem políticas públicas que garantam boas condições de vida para idosos negros

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Alexandre da Silva

Doutor em saúde pública pela USP, professor de saúde coletiva da Faculdade de Medicina de Jundiaí e coordenador da área de raça, etnia e envelhecimento do Centro Internacional da Longevidade (ILC) no Brasil

Promulgada no Brasil em 1885, a Lei dos Sexagenários determinava que toda pessoa negra a partir dos 60 anos ganhava o direito à liberdade. De imediato, foi considerada uma "lei para inglês ver", já que era muito difícil que pessoas negras chegassem a essa idade.

Em 2021 no Brasil, a expectativa de vida de uma pessoa negra aos 60 anos segue inferior à de pessoas brancas com a mesma idade.

O que isso significa? Que não conseguimos ter ações ou políticas capazes de garantir as mesmas condições de vida para um grupo social que, historicamente, acumula maiores dificuldades para o bem viver e que são decorrentes do acúmulo de discriminações e desigualdades ao longo de toda a vida.

Há constatações que corroboram isso. No município de São Paulo, pessoas idosas negras possuem maiores dificuldades para um diagnóstico preciso ou conclusão de um tratamento. No Brasil, são os grupos que mais sofrem de doenças crônicas não transmissíveis, como a hipertensão arterial, que acomete 50,6% dos idosos negros e 65,5% das idosas negras.

mão de pessoa negra idosa segura miniatura dourada de um santo
Idosa de uma comunidade rural da cidade de Valença (RJ) com uma imagem de Santo Onofre - Antônio Gaudério - 29.jun.2000/Folhapress

Como tantas outras, essa é uma doença que decorre fundamentalmente de estresses ao longo da vida, da impossibilidade de ter uma alimentação adequada, das poucas chances de prática de atividade física e da ausência de condições dignas de trabalho, gerando um ciclo vicioso que resulta em baixa qualidade de vida.

Em tempos de pandemia, pessoas idosas negras sofreram desproporcionalmente, com mais adoecimentos e óbitos por Covid-19. Muitos sobreviveram com condições crônicas e deficiências e, com frequência, acompanharam a morte ou o adoecimento grave de filhos, filhas, netas ou netos.

Qualquer avô ou avó fica muito compadecido, questionando seu propósito de vida ao ver seus descendentes sofrerem tanto. E não só sob o ponto de vista de saúde. Muitos netos e netas deixaram, por exemplo, de participar do Enem. Ademais, o índice de desemprego ou subemprego é muito maior entre a população negra.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Centro Internacional da Longevidade (ILC-Brasil) recomendam o envelhecimento ativo para a boa longevidade, composto pelos pilares: saúde, aprendizagem ao longo da vida, participação e segurança.

E como garantir essas condições para um grupo social que segue ainda tão vulnerável? Famílias inteiras experimentando insegurança alimentar —quando não famintas mesmo. Isso resultará, entre as pessoas idosas, mais doenças, mais casos de síndrome de fragilidade e mais perda de capacidade funcional e independência.

Além disso, com acesso limitado ao mundo digital, não apenas idosos ficaram excluídos como também seus familiares mais jovens, adicionando novas condições prejudiciais para o envelhecimento das gerações futuras.

Nunca acreditei no "melhor novo normal", mas não imaginava que o que já era ruim pudesse piorar. É urgente um pacto nacional para garantir cuidados de saúde e assistência para as pessoas que muito perderam.

Saibamos incorporar soluções e acolhimento nos bairros e comunidades onde vivem, e adiar tomadas de decisões que visem o aumento de tempo de contribuição previdenciária ou da idade para se considerar uma pessoa idosa. É preciso também não dificultar a prática de incentivos fiscais das instituições que contribuem para um bom envelhecimento populacional.

Uma nação só cresce quando olha para trás e reconhece os que vieram primeiro.

SÉRIE DISCUTE QUESTÕES DA LONGEVIDADE

A seção Como Chegar Bem aos 100 é dedicada à longevidade e integra os projetos ligados ao centenário da Folha, celebrado neste ano de 2021. A curadoria da série é do médico gerontólogo Alexandre Kalache, ex-diretor do Programa Global de Envelhecimento e Saúde da OMS (Organização Mundial da Saúde).

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