Feminista intrépida, Maria Antonia completa 100 anos

Ativista pelos direitos de idosos e mulheres, ela presidiu Fórum Nacional da Terceira Idade

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São Paulo

No final da década de 1920, na cidade de Campinas (SP), o ferroviário anarquista Alfredo José Rodrigues perguntou à sua filha Maria Antonia, de oito anos, se ela já sabia ler. A menina respondeu que sim. "Então, sente aí e leia o jornal para mim", pediu o pai, dando-lhe o Diário do Povo, veículo da cidade que deixou de circular em 2012.

retrato antigo de Maria Antonia Rodrigues
Maria Antonia Rodrigues Gigliotti, que completou 100 anos no dia 21 de janeiro - Arquivo Pessoal

Desde então, diariamente, Maria Antonia Rodrigues Gigliotti, que completou 100 anos na sexta-feira (21), começa seus dias com a leitura de notícias. Não foi o único hábito transmitido de pai para filha: o engajamento na política também foi herdado por Marucha, como Maria Antonia é chamada pela família e pelos amigos.

"Tive uma infância simples, de filha de operário. Éramos cinco irmãs e três irmãos, e tivemos muita dificuldade, mas superamos", diz ela, descrevendo uma família que prezava, acima de tudo, a liberdade.

Sua mãe, Carolina Krambeck Luders, filha de uma imigrante alemã, criou Marucha para que fosse independente, desde que assumisse, sempre, a responsabilidade por seus atos.

Com a bagagem política, oriunda da infância vivida entre operários ligados à esquerda, Marucha mudou-se para São Paulo aos 17 anos "na cara e na coragem". Foi quando começou a trabalhar como comerciante. "Naquele momento, eu não tinha como estudar. Era a luta pelo dia a dia", lembra.

retrato antigo de Maria Antonia Rodrigues
Maria Antonia Rodrigues Gigliotti aos 17 anos, em 1939 - Arquivo Pessoal

Foi nesse período que ela se envolveu com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), em plena ditadura do Estado Novo, que empurrou o ‘Partidão’ para a clandestinidade.

Mas o momento que Marucha considera fundamental na sua história é o início da década de 1980, quando o Brasil ensaiava a redemocratização após quase duas décadas de ditadura militar, e os movimentos sociais tornavam-se cada vez mais organizados.

"Eu era uma mulher tímida, cheia de preconceitos, e a minha vida mudou quando entrei na União de Mulheres de São Paulo. Me tornei feminista e comecei minha luta pelas mulheres, principalmente pelas idosas, esquecidas por todos", conta.

Marucha decidiu retomar os estudos aos 60 anos e fez um curso de gerontologia oferecido pela USP. "Mas meu forte mesmo é a política", ressalta. A partir daí, a dignidade e os direitos de pessoas idosas guiaram o ativismo de Marucha, que, mais adiante, tornou-se presidente do Fórum Nacional da Terceira Idade, fundado após a extinção do Conselho Municipal do Idoso pelo então prefeito Jânio Quadros.

Ela gosta de se lembrar das manifestações populares das quais participou. Para protestar contra a política econômica de Fernando Collor, a ativista fechou, ao lado de outros 400 idosos, um trecho da rodovia Anchieta. Esteve em Brasília diversas vezes, uma delas durante a Assembleia Constituinte.

"Eu sinto não ter mais 20 anos para ir a uma passeata. É o povo na rua, lutando por seus direitos, eu acho bonito, me emociona muito". Ela se recorda de um episódio em que manifestantes ocuparam a faculdade de direito da USP: "A gente entrando, a polícia batendo, são coisas emocionantes", ri.

Leitora da Folha há muitas décadas e assinante desde 2001, Marucha tem saudades das colunas de Clóvis Rossi e de Carlos Heitor Cony. E adorava Helena Silveira. Hoje, ela lê semanalmente a série Como Chegar Bem aos 100 e tem sugestões: que se fale mais das velhices negras, indígenas e quilombolas.

O gerontólogo Alexandre Kalache, curador da seção, conhece Marucha de longa data e vê na colega "um exemplo de história de vida, com propósito e missão". "Ela sabe que, no final, suas ideias prevalecerão", diz.

retrato antigo de Maria Antonia Rodrigues
Maria Antonia Rodrigues Gigliotti aos 30 anos, no início da década de 1950 - Arquivo Pessoal

Casada duas vezes, Marucha teve uma filha e dois netos. Passou boa parte de sua vida em São Paulo e hoje está de volta a Campinas, onde nasceu. Ela descreve a cidade como "provinciana", mas é o lugar onde encontrou sossego e conta com os cuidados da sobrinha Octávia Pires Barbosa de Barros. "Minha tia representa a força", diz Octávia.

Aos 100 anos, com a festa de aniversário marcada para este sábado (29), a política e "a luta", como diz Marucha, continuam a nortear sua vida. Hoje, uma das pautas que considera urgente é o combate à precarização de instituições de longa permanência. Do feminismo, quer movimentos cada vez "mais fortes e mais brilhantes".

Ela acha a velhice "uma porcaria", "e olha que não tenho uma ruga no rosto: é minha vingança contra os inimigos", ri. O que incomoda Marucha é a maneira como os idosos são tratados no Brasil. "Quando a gente fica velho, não pode mais falar certas coisas, que logo chamam a gente de gagá. E ainda me perguntam se tenho Alzheimer", afirma.

O que ela tem, de fato, são convicções que não esmoreceram em sua trajetória centenária. "É preciso avisar os idosos de que a luta continua", afirma. "Às ruas, às ruas! Povo na rua, isso que é bom, ver o povo gritando pelos seus direitos."

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