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Samira Adel Osman

Não se preocupe, senhor Lévi-Strauss, sua cultura está a salvo

Historiadora responde à republicação de entrevista com antropólogo e critica ideia de que islamismo ameaça cultura europeia

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Samira Adel Osman

Professora de história da Ásia na Unifesp, autora de "Imigração Árabe no Brasil"

Em 1989, o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009) disse à Folha que a cultura europeia estava ameaçada, principalmente, pelo que chamou de "integrismo islâmico". Com a recente republicação da entrevista, como parte dos projetos que celebram o centenário do jornal, a historiadora Samira Adel Osman, professora de história da Ásia na Unifesp, responde às considerações do antropólogo.

A especialista traz a discussão para o momento atual, quando a ideia de uma cultura europeia "ameaçada" pelo islamismo "contribui para discriminação contra os praticantes dessa fé" e justifica mecanismos de repressão e violência contra "essa gente que ameaça o modo de vida e a cultura do continente". Leia abaixo a réplica completa de Samira Adel Osman.

vários jovens imigrantes sírios estão atrás de grades. em uma pequena abertura, um jovem faz um sinal com os dois dedos e mostra um boné nas cores branca, verde e preta da bandeira da Síria
Em centro de detenção de migrantes na Grécia, implantado em 2016 durante crise de refugiados na Europa, jovem sírio mostra boné com estampa da bandeira de seu país natal - Aris Messinis - 16.abr.2016/AFP

Em 1989, eu era estudante de história na USP. Havia ingressado anos atrás e causava espanto saber que o mesmo Fernand Braudel, que dava nome ao anfiteatro do departamento de história, não era apenas referência bibliográfica ou homenagem, como também havia sido membro da missão de professores fundadores da USP, juntamente com Claude Lévi-Strauss.

No dia 19 de dezembro de 2021, a Folha republicou na série Entrevistas Históricas, a entrevista concedida em 1989 pelo antropólogo para Bernardo Carvalho por ocasião da inauguração da exposição "As Américas" no Museu do Homem, em Paris. O título: "Minha Cultura vive ameaça, disse Lévi-Strauss" teve o efeito esperado: li o texto, intrigada em compreender "minha cultura" e "ameaça" a que o antropólogo se referia.

Além de narrar a insólita cena em que o antropólogo percorreu o Sena numa canoa remada por índios do Canadá e dançou com eles na inauguração da exposição de objetos "recolhidos por ele durante suas expedições ao Brasil central e à costa oeste do Canadá", vários outros temas foram abordados. Talvez fosse comum, em 1989, usar o termo "índios", ou achar surpreendente um renomado antropólogo navegar em suas companhias, hoje com certeza a cena não só seria vista como inadequada, como seria interpretada como resquício do eurocentrismo e do colonialismo. Seria quase como estar na França em 1562 e observar os tupinambás na corte de Carlos 9º ou como ler uma página dos "Ensaios" de Montaigne.

O entrevistador comenta que 50 anos depois de constatar o estado das sociedades indígenas em vias de extinção, "ele (Lévi-Strauss) se preocupava sobretudo com o destino de sua própria cultura, ameaçada por todo tipo de integrismo [fundamentalismo], pelo Islã, mas também pelo aumento demográfico do Terceiro Mundo".

Carvalho pergunta a Lévi-Strauss: "O sr. falou recentemente... que hoje o mundo islâmico ameaça a Europa, a cultura ocidental, e que já que é assim o senhor toma o partido da Europa contra o Islã...". A resposta começa com algo como "não é bem assim...", ou melhor, não é "particularmente contra o Islã".

Lévi-Strauss faz um paralelo entre a provável extinção de culturas no Brasil e a constatação da provável extinção de sua cultura, o que o fazia se posicionar por sua preservação. A que ele se referia como "sua cultura", e como ela passava de uma posição de dominação absoluta (tudo bem ser absoluta sobre todas as outras?) para ameaçada, não fica claro.

No entanto, o que causou ainda mais espanto foi a identificação feita pelo renomado antropólogo das "muitas coisas" que ameaçavam sua frágil cultura: "a insuficiência demográfica, o fato de que não se fazem mais crianças em número suficiente na Europa para renová-la, pelo integrismo islâmico, é claro, mas também por toda a forma de integrismo", que não identifica quais são.

O que Lévi-Strauss deixa escapar é que integrismo e fundamentalismo são movimentos cristãos, católico e protestante, surgidos no final do século 19 que defendem um ativismo político de direita e atacam veementemente a ciência, o darwinismo e os livros didáticos, respectivamente. Quando Lévi-Strauss associa integrismo ao islamismo comete erros de definição, de conceito, de aplicação, gerando não apenas confusão, mas contribuindo para a discriminação e o preconceito contra os praticantes dessa fé.

Como Edward Said trata em "Covering Islam", a cobertura jornalística da Revolução Iraniana contribuiu para criar, reforçar e disseminar o equívoco, associando integrismo, fundamentalismo, radicalismo, fanatismo ao islamismo. Quando Lévi-Strauss faz essa afirmação, contribui ainda mais.

Lévi-Strauss afirma: "O Islã é um aspecto, mas está longe de ser o único", porque no final "há também a ameaça que representa, incontestavelmente, a proliferação demográfica dos povos subdesenvolvidos, que voltam seus olhos para os países da Europa, onde encontram condições de vida mais aceitáveis." Portanto, os pobres, não importa qual religião professem ou de qual cultura provenham.

Enquanto a população europeia sofre de "insuficiência demográfica" o resto do mundo ("povos subdesenvolvidos", "terceiro mundo") sofre do mal oposto: "a proliferação demográfica". Dito de outro modo, enquanto a Europa vive a racionalidade dos baixos índices de natalidade, o resto do mundo se reproduz de forma irracional. E, quando não conseguem ter as condições de vida adequadas em seus locais de origem, infernizam o sono e a segurança das sagradas fronteiras europeias, ameaçando o modo de vida e a cultura que os europeus tanto lutaram para construir.

Poderia falar aqui de imperialismo, colonialismo, neocolonialismo, mas o assunto é longo e demanda mais
reflexões.

A ironia maior é que desde 12 de dezembro a Folha tem apresentado em Mundo uma série de artigos em parceria com The Outlaw Ocean Project, cuja proposta é tratar das ações financiadas pela União Europeia para que a Líbia e outros países africanos façam o trabalho sujo de não apenas barrar os imigrantes, impedindo-os de cruzar as fronteiras europeias, mas também de aprisionar, torturar e assassinar essa gente que ameaça o modo de vida e a cultura do continente tão cobiçado.

Talvez alguns discordem e considerem que as falas do antropólogo devem ser contextualizadas, datadas, compreendidas no momento em que as disse. Seria verdade, se essa pessoa não fosse quem ela foi, o que fez, pesquisou e escreveu, e como seu pensamento persiste ainda hoje.

Como afirma Talal Asad, a antropologia surgiu como disciplina na era colonial e contribuiu para analisar as sociedades não-europeias dominadas pelo poder europeu, produzidas pelos europeus para uma audiência europeia. Resta saber se, como propõe o autor, a disciplina aceita fazer a lição de casa e sair de uma posição defensiva e fazer a autocrítica, inclusive de seus ícones.

Se, em 1989, eu não fosse apenas uma aluna de graduação, gostaria de ter respondido ao senhor Lévi-Strauss: Não se preocupe, sua cultura está a salvo.

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