Poeta, Gerardo Mello Mourão foi correspondente da Folha na China

Cearense foi preso pelas duas ditaduras de seu tempo e dedicou sua vida à poesia

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São Paulo

"Um poeta que traía a poesia com o jornalismo" é como Odorico Leal, doutor em literatura brasileira pela USP, resume algumas das muitas facetas do cearense Gerardo Mello Mourão (1917-2007), que colaborou com a Folha ao longo de 40 anos e foi correspondente do jornal em Pequim de 1980 a 1982.

Era um sábado de Carnaval quando Gerardo chegou ao Rio de Janeiro, em 1935. Nascido na cidade de Ipueiras (CE), na divisa com o Piauí, a chegada ao Rio marcou o início de sua trajetória como militante, jornalista e, principalmente, poeta.

retrato colorido de Gerardo em uma biblioteca. ele está sentado, vestindo camiseta xadrez vermelha e verde, e olha para a câmera
O poeta, jornalista e escritor Gerardo Mello Mourão - Pércio Campos/Agência O Globo

Aos 18 anos, ele acabara de deixar o Seminário São Clemente, em Congonhas do Campo (MG), onde morou e estudou por seis anos. Às vésperas de fazer os votos para tornar-se padre, abandonou o convento e partiu para o Rio, onde, para seu desespero, cantava-se pelas ruas: "Eva querida, quero ser o seu Adão", conforme relatou em entrevista ao Pasquim.

Com a densa formação do mosteiro, onde estudou filosofia e tornou-se poliglota, dominando inclusive o grego e o latim, Gerardo aproximou-se da intelectualidade católica carioca, que o levou à Travessa do Ouvidor, nº 32, sede do movimento integralista.

Atraído pelo caráter conservador e nacionalista do integralismo, bem como pela oposição a Getúlio Vargas e ao imperialismo dos EUA, Gerardo filia-se à Ação Integralista Brasileira em dezembro de 1935. É nesse período que começou a atuar como jornalista, trabalhando para os jornais Ofensiva e O Povo, alinhados ao ideário fascista.

Em 1938, participa do ataque ao Palácio Guanabara. Até o fim do Estado Novo, sete anos depois, foi detido inúmeras vezes e, em 1942, foi condenado à morte sob acusação de colaborar com o nazismo (a pena foi reduzida a 30 anos de prisão, dos quais cumpriu seis).

"Mas isso não é o fundamental do Gerardo", afirma João Batista Natali, correspondente da Folha em Paris na década de 1970 e amigo do poeta. "O fundamental no Gerardo era sua doçura, sua imensa cultura e a excelência de sua poesia. Para ele, a poesia era a forma sublime e superior do emprego da palavra", completa.

Foi na prisão que escreveu "Valete de Espadas", publicado na década de 1950, dando início a um projeto poético que mescla o épico à vida mundana, a tradição grega ao cordel. Mais adiante, sua trilogia "Os Peãs" —composta por "O País dos Mourões" (1963), "Peripécias de Gerardo" (1972) e "Rastro de Apolo" (1977) —lhe rende o reconhecimento nacional e internacional, com indicação ao Prêmio Nobel de Literatura.

"A poesia de Gerardo dá conta de uma peregrinação incessante", escreve Odorico Leal. "Seguindo um sopro cosmopolita ela, não obstante, sempre regressa à terra dos antepassados, o país do mar e do sertão do Nordeste brasileiro".

O pesquisador reforça que, embora filiado ao integralismo, a poesia de Gerardo não possui nenhum aspecto "carola, moralista ou prescritivo". Ao contrário, "é uma poesia sensualista, mesclando erotismo exacerbado a uma angústia associada à preocupação filosófica, existencialista, sobre como viver uma vida autêntica e livre. Eu diria que sua poesia tem um sentido profundamente libertário, em contraposição às muitas ocasiões em que foi preso por ditaduras."

Eleito deputado federal duas vezes por Alagoas, Gerardo teve seus direitos políticos cassados em 1969, pouco tempo após o AI-5 ser decretado. Novamente foi preso, desta vez acusado de envolvimento com o comunismo, dada sua proximidade e amizade com diversos intelectuais e jornalistas.

Sobre sua temporada na China, pouco se sabe das circunstâncias que o levaram a aceitar o posto de correspondente. "Pequim era um lugar muito difícil para trabalhar, porque só havia as fontes oficiais que falavam a mesma coisa para todo mundo", diz Natali. "Em seus textos, Gerardo procurava dar uma coloração local e literária, para ir além do conteúdo dogmático que o Partido Comunista lhe dava."

Cauteloso, sem nunca "bater de frente" com o regime chinês, Gerardo emprestava seu rigor poético ao jornalismo, fazendo para a Folha reportagens atentas à economia e ao comércio exterior, bem como às relações da China com outros países.

Chegou a dar "furos", como se diz da informação exclusiva, como a reportagem de março de 1980, "EUA devem criar um ‘novo Japão’ na Ásia". A matéria revelava um relatório, encomendado pelo Pentágono, que era "ao mesmo tempo análise e projeto": a aliança entre EUA e China seria fundamental para conter o avanço soviético na Ásia.

Após a passagem por Pequim, Gerardo continuou colaborando com o jornal tanto com artigos de opinião e resenhas. Em 1999, venceu o Prêmio Jabuti pelo épico "Invenção do Mar", uma de suas obras mais importantes. Morreu no Rio, em 2007, em decorrência de problemas cardíacos.

Ao longo de sua vida, Gerardo nunca se fixou em um só lugar, nem em uma só profissão, via-se apenas como poeta. Como afirmou à Folha em 1977, para ele "a poesia é o único tempo e o único espaço possível", e existe "no rito de conviver com as coisas, os lugares e as pessoas".

RAIO-X

Gerardo Mello Mourão (1917-2007)

Nascido em Ipueiras (CE), foi jornalista e poeta, indicado ao Prêmio Nobel de Literatura em 1979 e vencedor do Prêmio Jabuti em 1999, pelo épico "A Invenção do Mar". Colaborou com a Folha por 40 anos e foi correspondente do jornal na China no início da década de 1980.

Este texto faz parte do projeto Humanos da Folha, que apresenta perfis de profissionais que fizeram história no jornal.

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