De repórter a colunista, Edgard Alves foi mestre discreto de gerações de jornalistas

'Degas', que estreou na Folha em 1967, morreu dia 4/2, aos 73 anos

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Fabio Victor

Jornalista, trabalhou na Folha de 1997 a 2017 e na revista piauí de 2017 a 2020, hoje dedica-se a projetos autorais

O que é um jornalista senão um contador de histórias? Edgard Alves era antes de tudo um grande contador de histórias: um grande jornalista.

Sob certa desconfiança que às vezes despertava por sua verve de pescador, passou anos a fio na Redação a contar passagens fantásticas de uma vida bonita. Na adolescência, em sua Botucatu natal, houve uma enchente, moradores foram tragados pelo dilúvio, o menino-homem Degas atirou-se às águas revoltas e salvou alguns –um herói imberbe. Todo mundo duvidava, e tempos depois Edgard trazia o recorte de jornal local com a notícia de sua condecoração, pela Câmara Municipal de Botucatu, pelo ato de bravura.

Dizia que tocara acordeão na juventude, o povo desconfiava. Passavam-se uns meses, ele chegava com a foto empunhando a sanfona. Encontrou uma onça atropelada no acostamento da Anhanguera. Balela? Seu filho Leandro confirmava tudo. Que não se duvidasse das histórias de Edgard Alves.

Nas horas de dor pela partida de alguém querido, é inevitável que nos assombre a lista do que faltou fazer com aquela pessoa, de tudo o que adiamos e por fim, com o coração devastado, constatamos que não poderemos mais. A minha e de tanta gente em relação ao Degas é imensa, mas a sua dimensão humana impõe que se comece falando por tanto realizado, pelas suas histórias exemplares.

Em mais de 50 anos de jornalismo, a partir de 1967 e sempre pela Folha, foi principalmente repórter, mas também chefe de reportagem (ou pauteiro, no jargão, aquele que distribui e cobra as tarefas à equipe), colunista e, sobretudo, um mestre discreto, ouvidor-geral de focas aflitos e conselheiro seguro de veteranos –solícito a quem precisasse.

Num depoimento publicado em O Estado de S. Paulo, o colega Wilson Baldini Jr narra como foi seu primeiro encontro na Redação da Folha em 1993 com quem já lhe era então "um ídolo da profissão", "o Pelé do jornalismo esportivo", aquele cujas reportagens ele corria para ler diariamente.

"Lembro que estava sentado na Redação de costas para a entrada e escutei alguém dizer: ‘Fala aí, Edgard!’ Gelei. O cara era uma lenda. A cara fechada dele me intimidou ainda mais. Mas eu tinha de quebrar esta barreira. Eu me aproximei e disse: ‘Olá, Edgard. Sou novo na editoria e queria dizer que sou seu fã.’ Ele me olhou fixo e disse: ‘Deixa de besteira. Senta aí.’ Daí para frente e até hoje, ele se tornou o meu professor".

Edgard especializou-se na cobertura de esportes olímpicos –principalmente basquete, boxe e atletismo. Cobriu sete Olimpíadas (Montréal-1976, Moscou-1980, Atlanta-1996, Sydney-2000, Atenas-2004, Pequim-2008 e Rio-2016), cinco Jogos Pan-Americanos, inúmeros Mundiais e também tragédias fora do esporte, como os incêndios dos edifícios Andraus (1972) e Joelma (1974).

Nos anos 1980, foi diretor do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. A entidade emitiu uma nota em sua homenagem.

"Quando entrei na Folha, em 1985, no início da carreira, Edgard se destacava na Redação pela defesa vigorosa dos direitos e reivindicações dos jornalistas, enfrentando a direção do jornal em várias oportunidades. Era um incansável organizador do Sindicato. Sua firmeza, integridade e coragem davam um exemplo luminoso num momento particularmente difícil, com demissões em massa e avanço na precarização das relações de trabalho", declarou Paulo Zocchi, ex-presidente e atual diretor do sindicato.

Na fase de pauteiro, quando o conheci, passava o expediente numa mesa no fundo da editoria de Esporte, de boina e com uma toalhinha ou cachecol envolvendo o pescoço contra o ar-condicionado da Redação, ao qual imputava boa parte das enfermidades dos colegas (o povo gozava de seu exagero, mas, como quase sempre, ele estava certo), entretendo a boca com um toco de charuto.

Conduzia seu trabalho, crucial para o bom funcionamento da equipe, sem se alterar, sem levantar a voz. Quando se aposentou e deixou o dia a dia do jornal, passou a assinar uma coluna semanal sobre esportes olímpicos, na qual traduzia com clareza e simplicidade o noticiário, de um modo que só sua experiência e a sabedoria eram capazes.

Acima de tudo, Degas foi um exemplo de jornalista íntegro, ético, generoso e gentil, como atestam colegas, atletas, entidades esportivas. Interessava-se genuinamente pelas pessoas.

"Um gigante", publicou o Juca. Magic Paula destacou seu "legado de ética". "Um dos seres humanos mais dignos e generosos que conheci. Esteve sempre ao lado dos mais fracos. Foi fiel à sua cabeça e ao seu coração até o fim", escreveu o Mário. Segundo o Melk, um homem que nunca falou mal de ninguém.

É verdade, e aqui vale um acréscimo: como é possível alguém tão crítico das deformações do mundo não falar mal de ninguém? Porque o Degas podia atacar ideias e práticas, jamais pessoas.

Era um lorde –um lorde botucatuense, um lorde caipira. Um lorde desapegado das aparências, avesso a frivolidades e salamaleques, radicalmente contra o consumismo. Mas, sem abrir mão da essência socialista, vez ou outra se desmanchava com as delícias do capital. Como quando, no embalo de filhos e netos, foi à Disney, adorou e quis voltar.

Amava Jack London e sua vida de aventura e liberdade, adorava Hemingway, de quem parecia um duplo –poderia concorrer e até ganhar aquele famoso concurso de sósias. Amava o jornalismo —devorar notícias, comentá-las com os amigos, dissecá-las criticamente (ultimamente andava encantado com as colunas de Cristina Serra na Folha).

Gostava de comer tudo o que não podia, bisteca, costelinha, torresmo, a gordura da picanha, doce de banana. Amava as boinas. Amava a busca pela justiça entre os homens. Amava as pescarias, mesmo quando, como na maioria das últimas vezes, não pescava nada (ainda assim, tentou ensinar amigos como o Days a pescar, em vão; e certa vez tirou, com um alicate e pinga à guisa de antisséptico, um anzol que varou o dedo do meu cunhado Ricardo). Levava uma maleta bem fornida de linhas, anzóis e apetrechos mil —e o toco de charuto, que mascava para se entreter durante a longa espera.

Um dos grandes prazeres era ir a um pesqueiro em São Roque, em que passávamos horas sem pescar nada, mas ao final comíamos um sashimi de tilápia fresca que ele adorava. Fazia um pacu na brasa de babar (alimentou com o filho a ideia de abrir um restaurante dedicado ao peixe; se chamaria Só Pacu; não saiu do papel).

Amava sua família: Yara, a companheira de toda a vida (fingia impaciência com as suas infindáveis experiências arquitetônicas e de, digamos, feng shui, mas no fundo gostava), a filha Aline (que o teve como paciente número um por toda a carreira e era uma leoa a proteger o pai), o filho Leandro (parceiro no amor ao Corinthians, coidealizador do Só Pacu), a neta Pietra e o neto Victor, paixões do fim da vida.

Cardíaco, diabético, Edgard conviveu os últimos anos com inúmeras complicações de saúde, situação capaz de levar muitos à amargura ou ao desatino, mas que ele conseguiu suportar com grandeza de espírito inigualável. Talvez porque gostasse tanto de gente, porque fosse um humanista que buscava a arte do encontro e sabia do valor da amizade. Se um amigo andava distante, ele cutucava.

Em novembro passado, recém-alojado com Yara no novo apartamento, me escreveu um email-provocação, cujo título dizia BONS CAMARADAS SEMPRE PRESENTES:
"Dois CAMARADAS já vieram me visitar. O Adriano foi o primeiro, no domingo, e o André Fontenelle, acompanhado da filha Alice, na terça depois do almoço. Foi muito bacana. O simples reencontro dá força para todos. Estamos vivos e vamos lutar para continuar vivos. Amizades fortes enchem o espírito e criam um clima de resistência.
Abração
PS: como você demora para atender o telefone, decidi mandar o email. Ah!Ah!Ah!"

Meu querido Degas: na nossa última conversa ao telefone, na quinta, você reafirmou tua vontade de ler os capítulos iniciais do livro que venho escrevendo. "Isso aí eu gostaria", você disse, num raro lampejo de animação num papo desencantado. Fiquei de te mandar, não deu tempo. Você estava acabrunhado e impaciente, cansado. Queixando-se da dor de uma nova ferida na perna que não sarava por causa da diabetes, desabafou: "Eu não aguento mais". A pandemia, as mortes próximas –a de Alípio Freire e do teu irmão Everaldo foram grandes baques recentes, e teu amigo Émerson se foi no mesmo dia sem que você soubesse, que loucura—, a ruína do país, a escalada autoritária, o império da estupidez –tudo isso também vinha te consumindo aos poucos, eu sei.

Faltou mais coisa. Faltou te levar ao Recife, você falava tanto, se a TV exibia alguma coisa sobre Pernambuco, você ligava na hora (você era desses que ligam para avisar de algo bom na TV), que pena que não deu. Faltou entregar dois livros que eu terminara e tinha ficado de emprestar, a biografia do Doutor Sócrates, do Andrew Downie, e uma seleção de reportagens de Audálio Dantas, teu companheiro dos tempos de sindicato (ainda bem que consegui te mandar o livro do Luquinha, que você leu, gostou e comentou). Faltou também o encontro com o Cobão –você disse que tinha falado com ele e estava tudo certo pra nos vermos em breve, talvez até num churrasco na nova varanda.

Mesmo depois do email-provocação eu continuei meio relapso com o telefone, mas nunca deixamos de conversar, quase todo dia, e ainda bem que consegui ir te ver em dezembro na casa nova. Ficou guardado num canto da memória aquele almoço há sete anos, quando você me veio com um pedido esquisito: "Quero que você escreva meu obituário". Desconversei, você estava ativo e vivaz, me pareceu um papo torto. Mas você reforçaria o pedido outras vezes. Pois é o que faço agora, meu velho amigo Lobo, com uma saudade danada e o coração miúdo diante do vazio imenso que você deixa.

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