Indígena guarani traz de volta abelhas nativas que haviam desaparecido do Jaraguá

Aldeias de São Paulo criam dez espécies sem ferrão, que polinizam a mata e produzem mel e cera para rituais tradicionais

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São Paulo

A primeira coisa que Márcio Verá Mirim precisa explicar quando recebe visitantes na criação de abelhas de sua aldeia é que elas não machucam. Apesar de serem nativas do Brasil, as espécies que voam por lá são pouco conhecidas pelos brasileiros, que costumam associar esses insetos voadores à Apis mellifera — aquela que produz mel nos apiários e dá ferroadas doloridas, trazida pelos portugueses no século 19.

Liderança guarani, Márcio, 40, trouxe de volta para a Terra Indígena Jaraguá, em São Paulo, espécies que não se viam mais por ali. Conhecidas como abelhas sem ferrão por terem um ferrão atrofiado, elas produzem o mel, o própolis e a cera utilizados nos rituais sagrados e na medicina tradicional indígena, além de serem importantes polinizadoras da mata atlântica remanescente naquela área.

Márcio cuida de um meliponário com 140 caixas de madeira usadas para substituir o oco das árvores, habitat natural dessas abelhas, que vêm sendo ameaçadas pelo desmatamento, pelas mudanças climáticas e pelos agrotóxicos das plantações. Elas pertencem a dez espécies, sendo que sete delas estavam localmente extintas até 2017, quando o projeto começou.

A reintrodução de abelhas nativas faz parte da luta dos indígenas guarani daquele território para manter a floresta e as tradições de pé dentro da maior cidade do país. Com uma população flutuante, que em 2022 tinha 666 pessoas, segundo o Censo, eles estão divididos em sete ald eias aos pés do Pico do Jaraguá, o ponto mais alto de São Paulo.

Márcio conversou com a Folha na aldeia Tekoa Yvy Porã, onde também recebe grupos escolares e visitantes interessados no turismo de base comunitária. Ele sabe detalhes sobre cada uma das espécies, que, não à toa, são conhecidas pelos nomes indígenas recebidos há séculos: uruçu amarela, mandaçaia, mandaguari, manduri amarela, guaraipo, jataí, tubuna, iraí, mirim-droryana e mirim-guaçu.

"A gente sabe que mantendo essa diversidade de espécies, elas vão manter a biodiversidade da nossa mata", diz Márcio. "Nosso papel é protegê-las e plantar árvores nativas para ajudá-las. O resto do trabalho já é com elas."

"As abelhas nativas estavam desaparecendo do nosso território. Não tínhamos mais contato com essas espécies, tudo o que sabíamos sobre elas era o que ouvíamos nas histórias dos anciões. Por isso decidimos criar esse projeto.

A gente não tem medo de abelhas porque aprende, desde cedo, que elas não têm ferrão e que fazem bem à natureza. Para nós, guaranis, elas são parte da família.

A cera, o mel e o própolis são usados na medicina tradicional e nos nossos rituais sagrados. Um exemplo é o ritual da criança. Todo guarani tem um nome espiritual, que é revelado quando temos mais ou menos um ano de idade. Nesse batismo, a gente utiliza uma vela feita pelas mãos das mulheres, com cera produzida pelas abelhas.

A gente deixou a prática cultural de tirar os enxames da mata e passou a reproduzir as abelhas que já estão nas caixinhas. Na minha concepção, foi uma mudança para melhor, porque, além de usar a cera e o mel para a nossa vida, a gente está praticando o bem-estar das que estão na natureza.

Nós escolhemos as espécies que vamos reintroduzir ouvindo os anciões, mas também vendo o que a mata consegue suportar. É um trabalho de longo prazo, e temos que ter um olhar calmo e analítico para fazer o nosso papel de forma correta.

As abelhas nativas têm o papel fundamental de polinizar a mata atlântica. Elas são seletivas: cada espécie tem a sua função, seu território e a vegetação que precisa polinizar. As pequenininhas polinizam as plantas rasteiras e medicinais. As maiores, como voam mais alto e têm mais força, polinizam as árvores maiores. E tem aquelas que são ainda maiores e que vão polinizar as árvores que estão lá em cima, de vários metros de altura.

Na nossa cultura, a gente entende que Nhanderu [Deus] criou várias espécies para destiná-las para esses diferentes trabalhos na floresta e nos ensinou, como povo originário, a cuidar delas. Mantendo essa diversidade de espécies, elas vão manter a biodiversidade da nossa mata. Nosso papel é protegê-las e plantar árvores nativas para ajudá-las. O resto do trabalho já é com elas.

O guarani sempre foi um povo de reflorestar. É uma prática ancestral: caminhamos, observamos e vamos introduzindo as árvores que a gente não vê na mata. Temos um carinho especial pelo ipê amarelo, pela embaúba, pelo cedro, pelas plantas frutíferas como a pitanga, a uvaia, a grumixama.

O Pico do Jaraguá é sagrado para nós. Com o tempo, a cidade de São Paulo foi se aproximando e com ela veio um costume, uma maneira de viver, um tempo diferente do nosso. A gente tenta adaptar essa realidade para que nos traga coisas boas, mas mantendo nossas tradições fortes. Porque a cultura guarani é uma cultura viva. Está no nosso dia a dia, nos rituais, no artesanato, na agricultura, na forma de olhar a mata.

A mata atlântica é nosso elixir da vida. Sabendo utilizar de uma maneira respeitosa, com o manuseio correto, a gente vai viver, e não sobreviver, como a maioria está fazendo nos tempos de hoje.

Eu me preocupo quando olho para o futuro. Em vez de só ter uma visão crítica sobre as mudanças climáticas e os desastres ambientais, eu trago esse olhar da nossa prática. Falar é importante, mas não adianta só falar. Então eu pratico. Eu refloresto, eu ajudo as abelhas a passarem um inverno tranquilo. Estou fazendo meu papel.

Nós entendemos que a preservação ambiental e dos seres sagrados, como a abelha, trazem um ganho não somente para o indígena que habita um território preservado, mas para o entorno também. A cidade tem muito a ganhar, pois todos precisam de ar puro para respirar, de água potável para beber. "

A causa "Mata Atlântica: Regenerar e Preservar" tem o apoio da Fundação SOS Mata Atlântica.

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