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30/10/2003 - 14h13

Argentina celebra duas décadas de democracia

MÁRCIA CARMO
da BBC, em Buenos Aires

Oito presidentes (dos quais quatro interinos), quatro rebeliões militares, um ataque guerrilheiro, duas leis de anistia para os ditadores --a caminho de serem sepultadas de vez--, e quatro sucessivos anos de recessão --que estão ficando para trás-- são as marcas de duas décadas ininterruptas de democracia na Argentina.

É o período democrático mais longo da história do país, como observam o cientista político Rosendo Fraga, do instituto de pesquisa de opinião Centro de Estudos para a Nova Maioria, e a presidente da entidade Avós da Praça de Maio, Estela Carlotto.

Em 30 de outubro de 1983, um domingo, os argentinos foram às ruas para comemorar a eleição do presidente Raul Alfonsín. Ele foi o primeiro a assumir o poder, através do respaldo das urnas, após sete anos --e quatro presidentes autoritários-- da mais sangrenta ditadura da América Latina.

Quarenta dias mais tarde, no dia 10 de dezembro, Alfonsín recebia a faixa e o bastão presidencial das mãos do general reformado Reynaldo Bignone.

Documentos

Bignone foi o autor de um decreto que determinou a destruição de todos os documentos sobre os destino dos desaparecidos. Atualmente, ele cumpre prisão domiciliar, acusado de participar do seqüestro de bebês, filhos de desaparecidas políticas.

O general foi o último presidente de fato assumiu no dia 1º de julho de 1982, duas semanas após a renúncia do ditador Leopoldo Galtieri, que desistiu do cargo depois da derrota argentina para o Reino Unido na guerra das Malvinas.

Aquela foi uma batalha com a qual os militares pretendiam se perpetuar no cargo, já que com a medida eles pensavam conquistar o nacionalismo e o apoio necessário para seguir na Presidência do país.

Mas o ataque terminou sendo o passo decisivo para o retorno da democracia. "Lembro que os argentinos foram para as ruas apoiar o ataque e diziam: 'Imaginem se os ingleses vão sair de lá para lutar pelas Ilhas'", recorda o cineasta uruguaio Alberto Farina, que já vivia na capital argentina naquela época.

"Com a derrota, apareceram as críticas e aqueles mesmos populares que deram seu apoio à guerra afirmavam: 'Era óbvio que os ingleses reagiriam. Estes militares não sabem de nada'".

Era, então, o início do fim de um período de atrocidades que deixou entre 9.000 e 30 mil desaparecidos políticos --de acordo com a Conadep (Comissão Nacional para os Desaparecidos Políticos) e as organizações de direitos humanos.

Um número avassalador num país que, na época, segundo dados oficiais, possuía 28 milhões de habitantes.

Países vizinhos

A transmissão de cargo de Bignone para Alfonsín levou os argentinos às lágrimas, renovou a esperança da população em geral e antecipou o que ocorreria nos países vizinhos.

No ano seguinte, em 1984, o Uruguai elegia, pelo voto direto, o presidente Júlio Maria Sanguinetti. A eleição ocorreu após nove anos de governos de fato, iniciados com o regime repressivo de 1973 do presidente Juan María Bordaberry.

No Brasil, o retorno da democracia seria comemorado em 1985.

No Paraguai, quatro anos mais tarde, em fevereiro de 1989, o general Andrés Rodríguez liderou um golpe contra o ditador Alfredo Stroessner, que tinha passado 35 anos no poder.

Rodríguez convocou eleições e venceu. Naquele mesmo ano, o Chile elegia Patrício Alwin, depois de quase 16 anos de ditadura de Augusto Pinochet.

Mas diferentes historiadores, como Félix Luna e José Hamilton, afirmam que foi na Argentina que o Estado atuou com uma "política de terrorismo".

Militares

Quando o general Jorge Rafael Videla, o almirante Emílio Massera e o brigadeiro Orlando Agosti deram o golpe no governo --já pouco democrático-- de Isabelita Perón, em 24 de março de 1976, foi lançado o "Processo de Reorganização Nacional" -um documento que determinava desde o fim do Congresso Nacional ao corte de cabelos para os homens.

A atitude levou à revolta da guerrilha e a uma série de torturas e mortes que não pararam nem mesmo durante a Copa do Mundo de 1978, realizada na capital argentina.

Quando Alfonsín assumiu, criou-se a Conadep, os líderes militares foram levados ao banco dos réus e condenados em 1985 --muitos deles à prisão perpétua.

Mas as pressões militares acabaram levando o então presidente a assinar as chamadas leis de obediência devida e ponto final --o que também acabou resultando em um perdão aos militares por seus atos no regime militar.

Tensão

O ex-juiz do processo da Junta Militar, Ricardo Gil Lavedra, e o agora político Aldo Rico recordam que, na Semana Santa de 1987, o governo viveu um dos momentos de máxima tensão.

Rico liderou a ocupação do Campo de Maio no primeiro levante militar desde a volta da democracia.

Dois anos mais tarde, o episódio de La Tablada, realizado pelo movimento guerrilheiro "Todos pela Pátria", terminava numa batalha sangrenta.

A hiperinflação de quase 5.000% ao ano, os saques e a revolta popular levaram Raul Alfonsín a antecipar o fim de seu mandato. Ele passou a faixa para Carlos Menem seis meses antes do prazo constitucional.

Menem ficou dez anos no poder, sendo eleito e reeleito graças à estabilidade econômica. Privatizou praticamente todos os serviços, indultou todos os militares --inclusive os que não tinham sido beneficiados pelas leis de perdão de Alfonsín-- e fez de tudo para conseguir um terceiro mandato consecutivo.

Mas foi derrotado pelo aumento do desemprego, que no fim dos anos 1990 já atingia a marca dos 18% da população economicamente ativa.

De la Rúa

Fernando de la Rúa, do mesmo partido de Alfonsín, a UCR (União Cívica Radical), assumiu no dia 10 de dezembro de 1999, prometendo "moralizar" o Estado.

De la Rúa renunciou quando tinha cumprido apenas metade do seu mandato, em dezembro de 2001.

O país, então, viu a fúria tomar conta das ruas, após a introdução do "corralito" (o bloqueio de depósitos) determinado por De la Rúa, dias antes da sua queda.

Panelaços, saques, lágrimas e quatro presidentes interinos Ramón Puerta, Eduardo Camaño, Adolfo Rodríguez Saá e Eduardo Duhalde. A Argentina parecia novamente sem rumo.

O analista político Joaquín Morales Solá, do jornal La Nación, diz que ali ficou claro que "nem os argentinos e nem o mundo" permitiriam uma nova "aventura militar" o que sequer foi cogitado, de acordo com Horácio Jaunarena, ex-ministro da Defesa de Alfonsín e de De la Rúa.

"Os militares estão ocupando o papel constitucional que lhes corresponde", afirma. Vinte anos depois, os militares perderam o protagonismo político. E voltaram a enfrentar os tribunais.

O atual presidente argentino, Néstor Kirchner, foi eleito com 22% dos votos, recebeu a faixa do interino Eduardo Duhalde e tem recebido apoio popular para suas medidas entre elas, a decisão de não deixar crimes do passado na impunidade.

Despolitização

Até o dia 10 de dezembro, Kirchner --do mesmo partido de seu arquiinimigo político Carlos Menem, o Partido Justicialista (PJ, peronista)-- está concluindo o mandato que corresponderia a De la Rúa.

Kirchner é o quarto presidente eleito em 20 anos de democracia num país onde muitos, como Carlos March, da ONG Poder Ciudadano, entendem que o fortalecimento e a "despolitilização" das instituições é o "passo decisivo" para que a Argentina consolide sua democracia.

Democracia que começou com Raul Alfonsín, hoje um discreto articulador político do seu partido, pouco simpático ao debate sobre o fim das leis de obediência devida e ponto final --anuladas pelo Congresso Nacional, mas ainda à espera de um parecer da Suprema Corte de Justiça sobre a constitucionalidade da votação no Parlamento.

Nesta semana, em entrevista a um jornal argentino, Alfonsín declarou: "Acho que a nossa democracia está consolidada".

Quando questionado sobre como gostaria de ser lembrado, afirmou: "Como um homem que teve convicções, ideais e que foi fiel a seus princípios".
 

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