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08/10/2004 - 19h43

'Democracia brasileira é incompleta', diz representante da Unesco

MÁRCIA CARMO
da BBC Brasil, em Buenos Aires

O representante da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) no Brasil, o argentino Jorge Werthein, de 62 anos, disse que "a democracia brasileira ainda é incompleta", mas que o país está avançando para reduzir suas diferenças sociais.

Para ele, apesar da histórica crise que viveu há quase três anos, a Argentina mantém o "capital social" adquirido quando o Brasil ainda experimentava a escravidão, no fim do século 19. Na sua opinião, essas diferenças sociais brasileiras não foram completamente eliminadas.

As declarações de Jorge Werthein foram feitas em entrevista exclusiva à BBC Brasil, logo depois que ele participou, no Ministério da Educação da Argentina, da criação do Observatório de Violência Escolar.

O Observatório já existe no Brasil e reunirá antropólogos, psicólogos, sociólogos e advogados argentinos que farão uma radiografia da situação das escolas do país. Werthein chegou à capital argentina a pedido do ministro da Educação, Daniel Filmus, uma semana depois que um adolescente de 15 anos matou três colegas de classe na escola Ilhas Malvinas, na localidade de Carmen de Patagones, na província de Buenos Aires. Leia abaixo a entrevista na íntegra.

BBC Brasil: Qual o objetivo do Observatório de Violência Escolar? Werthein: Fazer um diagnóstico da situação das escolas e poder sugerir estratégias de políticas públicas para poder diminuir os níveis de violência nas escolas argentinas e, em geral, em todo o mundo.

BBC Brasil: Serão medidas preventivas? Werthein: Antes do Observatório, o Ministério da Educação da Argentina já vinha desenvolvendo um trabalho pioneiro na América Latina, que é a mediação dos conflitos escolares. Ou seja, um grupo habilitado para capacitar professores na Argentina para que eles saibam compreender e intervir em situações sociais de conflitos, evitando que eles continuem ocorrendo. O observatório é um complemento disso, já que também pretende prever situações de violência.

BBC Brasil: Qual é a sua opinião sobre o que ocorreu na escola Ilhas Malvinas, em Carmen de Patagones, na semana passada? Werthein: Foi uma situação extrema e até difícil de ter sido prevista. Assim como também era difícil prever Columbine, nos Estados Unidos. A lei do silêncio tem imperado muito nas escolas. Não se fala de temas conflitivos. Em Columbine, 15 ou 16 adolescentes sabiam o que ia acontecer, mas não falaram com ninguém. Nas escolas, caiu o nível de confiança de forma significativa. E se não há confiança, não se fala, não há interlocutor com quem os alunos possam falar. O importante é poder acompanhar esses conflitos e saber como vão se desenvolvendo e, na medida do possível, evitá-los. Temos que tentar evitar não só situações trágicas e extremas como essas, mas outras, do cotidiano, como a violência física e simbólica.

BBC Brasil: Por que impera a lei do silêncio nas escolas nos dias de hoje? Werthein: Caiu o nível de confiança entre professores e alunos, entre alunos e diretores, entre alunos entre si. A lei do silêncio é muito marcante e imposta em muitos países pelo tráfico de drogas. Essa estratégia do tráfico é algo que também invadiu algumas escolas. O que temos que fazer é romper esta situação de desconfiança, poder fortalecer o diálogo, porque não há nada mais importante neste momento, dentro das escolas, do que criar mecanismos de diálogo. E, infelizmente, os professores em geral, e não só na Argentina e no Brasil, mas em outros países, ainda não estão capacitados para poder estabelecer esses diálogos. Eles não sabem muito bem como fazer isso. Nós temos de auxiliá-los e mostrar a eles como ser agentes da tolerância, do respeito às diferenças, do não racismo. São estes os caminhos que podem levar a uma cultura de paz.

BBC Brasil: A juventude mudou e os professores não conseguiram acompanhá-la? Wertheim: A juventude, ou melhor, as juventudes mudaram. As juventudes urbanas, as rurais, as das classes média, média alta, baixa. Ou seja, essas juventudes são diferentes e têm problemas e conflitos diferentes. E precisam de respostas que, em muitos casos, também são diferentes. Muitos dos jovens de hoje não tinham acesso às escolas, estão num processo de inclusão escolar, e é necessário entender estes novos atores sociais.

BBC Brasil: Qual a sua opinião sobre a situação social do Brasil hoje? Ela ainda é mais delicada do que a da Argentina, mesmo depois da crise histórica vivida pelo país? Wertheim: Sim, é verdade. A América Latina concentra indicadores das maiores desigualdades em todo o mundo. O Brasil é e sempre foi um país mais desigual que a Argentina. Historicamente e por décadas. No Brasil, o benefício da educação de qualidade ainda demora a chegar para a maioria da população. A maioria da população ainda não tem acesso à educação de qualidade e, inclusive, um grande setor da sociedade não tem acesso à educação. O caso argentino é diferente. Na Argentina, já a partir de 1860, se definiu uma política de prioridade para a educação. E aquela medida permitiu que, desde aqueles tempos, se formasse um grande capital cultural, um grande capital social, que o país manteve, apesar das crises. Foi uma construção ao longo de muitos e muitos anos. O Brasil teve uma história diferente, com a escravidão, com uma abolição da escravidão que não permitiu que os ex-escravos tivessem acesso imediato ao sistema educacional. Então foi criado um segmento da população que demorou a contar com seu capital social. Isso foi determinante de uma grande desigualdade que mostra a diferença entre o caso brasileiro e o caso argentino.

BBC Brasil: Este capital social foi mantido mesmo depois da recente e histórica crise vivida pela Argentina? Werthein: Sim, porque apesar do fato de que parte da população empobreceu, este capital social e cultural não se perdeu, e ele também permite que, num processo de recuperação econômica, essa recuperação pessoal, e também do país, seja muito mais rápida. Por isso acho que quando falamos de democracia, quando falamos de igualdade, de inclusão, não podemos deixar de falar que se não há educação e se não há acesso à escola, para a sociedade não vai haver democracia, não vai haver desenvolvimento e nem igualdade.

BBC Brasil: No caso do Brasil, então, a democracia ainda não é plena? Werthein: O Brasil ainda tem uma democracia incompleta. O Brasil avançou muito, mas é necessário incluir aqueles que historicamente estiveram excluídos. Ainda há grande parte da população passando fome, um grande número de jovens que não tem acesso ao ensino médio, um grande número de analfabetos. Obviamente, então, a democracia é incompleta. Mas acho que o Brasil tem todas as condições para mudar essa situação e está num bom caminho, fazendo enorme esforço para mudar essa situação que tem décadas e décadas.

BBC Brasil: Qual é a sua opinião sobre as medidas do governo Lula na área social? Werthein: O governo do presidente Lula chegou ao poder com uma plataforma clara de dar prioridade ao social e tentando dar estabilidade macroeconômica. E é bom destacar que conseguir essa estabilidade, como se está conseguindo no Brasil, vai servir para acelerar os programas sociais.
 

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