Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
02/12/2009 - 09h31

Sartre e os crustáceos

IVAN LESSA
colunista da BBC Brasil

Sartre é meu filósofo favorito. São aqueles olhos. Um pra lá, outro pra cá. Como se tentando observar seu lugar no mundo a um ângulo de 360º.

Quanto a seus escritos filosóficos, nunca entendi nada. O mundo parece ter chegado à mesma conclusão que eu cheguei quando me vi cercado por todos os lados pelo O Ser e o Nada. Hoje em dia, ninguém o lê, ninguém leva a sério sua filosofia, ninguém se dispõe a enfrentar sua caudalosa prosa penserosa.

O Tomo I da Crítica da Razão Dialética me era, e continua a ser, profundamente simpático. Tanta palavra bonita correndo de um lado para outro sem saber direito o que fazer. Direitinho como eu, quando era lateral esquerda do Dínamo, no futebol de praia. Parafraseando sua frase mais célebre, eu, como Sartre, estava condenado à liberdade. Só que com uma ressalva: a liberdade só era válida para o ponta direita que eu tinha a tarefa de marcar.

Brevemente, no entanto, Jean-Paul Sartre voltou aos noticiários por estes dias. Nada a ver com uma releitura de seus ensaios ou suas incursões no romance e no teatro. Também já passou a época dos futricos a respeito de sua vida --ou arranjo amoroso-- com a igualmente autora de difícil leitura (ao menos para mim), Simone de Beauvoir.

Não, não. Nada a ver com existencialismo, marxismo, fenomenologia, ontologia ou epistemologia. Sem "ismos", sem "ias". É que chegou ao conhecimento público que esse grande pensador, segundo dizem, do século passado foi perseguido pela avenida Champs Elysées abaixo por lagostas gigantes.

Vale a pena notar mais um território desbravado por Sartre. O fato, por assim dizer, deu-se em 1935, quando pouquíssimas ou nenhuma pessoa no mundo se viu perseguida por lagostas gigantes, de mais de um metro e meio digamos. Sartre, quando narrava o episódio, costumava às vezes se referir aos crustáceos como caranguejos gigantes. Coisa que eu e você, companheiro, jamais faríamos. Nisso que dá ter aqueles "zoiões" enviesados.

Podemos acreditar na narrativa sartreana, confidenciada inclusive a outro filósofo ainda mais incompreensível do que ele, Lacan? Podemos, claro que podemos.

O que houve foi que no mesmo ano em que Aldous Huxley experimentou a mescalina, 1935, Sartre, do outro lado do Atlântico fez o mesmo. Não se sabe quem influenciou quem, se influência houve. A experiência do romancista britânico resultou num livro muito popular, "As Portas da Percepção", que acabou inclusive influenciando toda uma geração de desocupados nos anos 60. Sartre não influenciou nada nem ninguém. A não ser que Jacques Lacan tenha escrito toda sua esotérica obra filosófica baseado na poderosa droga alucinógena.

Num trecho de um livro publicado ainda agora por John Gerassi, Conversando com Sartre, Jean-Paul, inusitadamente para ele, é claro e lúcido em sua narrativa explicativa:

"É, depois que eu tomei mescalina comecei a ver caranguejo em torno de mim o tempo inteiro. Eles me seguiam por tudo quanto é parte. Nas ruas, na sala de aula. Eu acordava de manhã e ia logo dizendo "Bom dia, meus queridos, dormiram bem? Oquêi, gente boa, agora nós vamos para o colégio" e eles ficavam por lá, à volta de minha mesa, quietos, sem se mexer, até que a sineta tocasse anunciando o fim da aula."

Sartre, anos depois, sempre se referindo aos seus companheiros crustáceos ora como lagostas, ora como caranguejos, admite para Gerassi que neles encontrou inspiração e confessa --e é aí que eu me reconcilio com toda a obra que não li do filósofo de Saint-Germain-des-Prés-- que, embora nunca tenha confessado para ninguém, ele sente falta deles. E finaliza com a seguinte consideração:

"Me lembro como eles costumavam ficar sentadinhos em minha perna."

 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página