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07/05/2010 - 08h14

Como passei minhas eleições britânicas

IVAN LESSA
colunista da BBC Brasil

Não tinha aquela redação que a gente era obrigado a escrever no Primário? Como passei minhas férias? Pois é. O retrocesso é uma forma superior de crítica.

Quinta-feira, dia 6 de maio. 15 graus, tempo instável. Acordei tarde. Lá pelas 8 horas. Deve ser o clima cívico. Sonhei que conversava com um velho amigo sobre coisas de velhos amigos. Não chegava a ser um pesadelo.

Tomei café com leite (em pó) e meus 3 biscoitos habituais. Dizem que "biscoito" tem origem etimológica no fato de ser cozido duas vezes. Faço uma nota mental de conferir no Google. Na televisão ligada no canal de notícias da BBC, repórteres agitadas falam sem muito dizer sobre vários assuntos desinteressantes.

Eleições, eleitores, elegidos? Só depois das 10 da noite. Aí entram em ação os realmente técnicos, os estúdios engalanados, e tome gráficos e efeitos especiais. Tudo diante de uma tela verde que serve para a projeção dos efeitos gerados por computador. Por que não dispensam logo o elemento humano e deixam logo que os computadores resolvam essa questão de 650 vagas, ou 648 cadeiras, como quiserem?

Nas esquinas, na condução o povão pensa em outra coisa e espera a chegada das reportagens para cumprir o outro importante dever cívico do dia: servir de vox populi, uma saída esplêndida para a falta de assunto, pronunciada aqui, aliás, "populái".

Permite-se que os candidatos e suas excelentíssimas sorriam no momento de deixar o papelote (adoro ainda votarem com papel) na urna escrutinadora, ou deixam a cabine indevassável que não pode ser mais devassável. Cacoetes democráticos. Duração de não mais que 12 horas. Depois volta todo mundo à recessão. Talvez dê inclusive para a imprensa falar nos mais recentes soldadinhos mortos no Afeganistão, que, em período eleitoral, continuaram quase quase vivos.

Ao que parece, o danado do vulcão islandês de nome complicado está soltando de novo cinzas e atrapalhando a vida de escoceses e irlandeses. Os meteorologistas dizem que a coisa poderá baixar até o sul no decorrer do fim-de-semana. "What an ash-hole!", comento em voz alta para apenas a gata ouvir e não achar nada. Meu melhor cai sempre em ouvidos moucos.

Um artigo no jornal, outro dia mesmo, deixava seus cuidados eleitorais e, em graciosa reportagem ilustrada, teorizava que as gatas são, em sua maioria, canhotas, ao passo que os gatos são destros. Tentei com Smudge, esse o nome da bicha, o teste recomendado, ou seja, passar um fio diante de seu nariz e ver com que patinha ela tentaria pegá-lo. Fiquei, ficamos, na mesma. Ela se interessou tanto pelo fio quanto eu pelos acontecimentos históricos que ocorriam país afora. Ficou de olhos semicerrados em seu lugar matinal de sempre. Somos, os dois, criaturas de hábito.

Vou à rua. Como já aprendi, tudo muito normal. Nenhuma surpresa. A normalidade reina pelos cantos. Por seis segundos lembro-me de minha infância e do tripé de fuzis armado na esquina de Barão de Ipanema com Atlântica, perto do Cine Rian, que era posto eleitoral.

Na esquina, o paquistanês do andar térreo me cumprimenta e pergunta se vou votar. Depois de alguns anos, deve ser a segunda conversa mais longa que mantemos. A primeira, mais prolongada e interessante, foi sobre o exagero que a companhia administradora de nossos imóveis estavam querendo nos cobrar. Expliquei que eu não era eleitor registrado. Ele me disse que era registrado e iria votar nos próximos momentos. Desconfiei que queria me dizer em quem, em que partido votaria.

Tenho a absoluta certeza que ele, como meu distrito todo, o de Kensington e Chelsea, vota Conservador. Não abro o jogo, no entanto, e mantenho uma expressão neutra, tentando dar o recado de que certas intimidades são muito pessoais, questões de foro íntimo e devem ser deixadas em paz. Não posso jurar que ele tenha captado a sutileza de minha posição política e existencial diante dos fatos que, por uma questão de destino, compartilhávamos, naquele dia e hora.

Comprei meu jornal, comida para a gata e algumas latas de água de coco tailandesas no indiano da esquina. Lá estavam alguns notáveis do Partido Trabalhista falando em voto tático diante do balcão de batatinhas fritas. Ou seja, que era para seus partidários não desperdiçarem seus votos com o próprio partido ou este o ponto nevrálgico o Partido Conservador. Que deveriam votar nos candidatos dos liberais-democratas. Como há motivo para se ficar em casa em dia de eleições gerais neste país, meu Senhor! Sem ligar rádio ou TV, lendo apenas Lima Barreto.

No metrô tento me lembrar de alguns trechos de música que o Tarantino encaixou, como sempre com brilho, no Kill Bill, volumes 1 e 2, que eu assistira na véspera. Uma delas reconheci sem ter que ir ao computador: uma composição de Quincy Jones para os credits da série Ironside, dos anos 70, que aqui estão passando de novo pouca-vergonha da TV comercial! às 9 da manhã. A outra é aquela que a assassina caolha, a Darryl Hannah, assobia no hospital a caminho de uma tentativa de Uma Thurman. Não há jeito de aflorar à minha consciência.

À noite, encerrado o pleito, passei uns bons (ou maus) dez minutos televendo especialistas projetando. E vaticinando e prognosticando e contando como tudo iria ser. São mestres nessas disciplinas, os britânicos.

Ah, sim. Ao que é importante: Darryl Hannah está assobiando um trecho composto pelo magnífico Bernard Herrmann para a trilha sonora do filme de Roy Boulting, de 1968, intitulado Twisted Nerve. Ouçam no YouTube. Aluguem o filme. É cult.

 

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