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12/08/2001 - 10h33

Em fita, soldado conta como foi torturado por seus comandantes

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JOSIAS DE SOUZA
daFolha de S.Pulo, em Brasília

Soube-se há dez dias que, sob FHC, as cartilhas secretas do Exército prevêem a hipótese de "arranhar direitos dos cidadãos". Aqui se verificará como pode ser tênue a fronteira entre a teoria de apostila e a prática da caserna.

O Exército produz arranhões mesmo sem sair dos quartéis. Arranhões, perfurações e queimaduras, é o que se pretende demonstrar.
O soldado Gledson Magalhães Nogueira foi torturado por superiores em Marabá (PA). Durante um treinamento, teve as mãos amarradas. Foi puxado por uma corda. O "exercício" lhe valeu a perda de sensibilidade na mão direita.

Dias depois, dois comandantes de Gledson acharam que, para fugir do batente, ele fingia. E resolveram tirar a prova dos nove. Furaram-lhe o dedo com uma agulha. Como nada sentisse, queimaram-lhe a mão. Uma, duas, três vezes.

A saga do soldado Gledson foi reconstituída numa fita Sony, do tipo microcassete. É parte de um lote de 19 fitas, apreendidas no escritório de inteligência do Exército em Marabá, junto com a papelada secreta que a Folha começou a publicar em 2 de agosto passado.

Por ordem do juiz Jeferson Schneider, a Polícia Federal transcreveu as fitas. O trabalho, concluído há cinco dias, foi executado pela agente Rose Marli de Freitas Vieira e por seu colega Ayres Bonfim Quariguasi.
Antes de chegar ao microcassete da tortura, Rose e Ayres escutaram muita abobrinha. O ninho de espionagem militar armazenava fitas com aulas de espanhol, técnicas de memorização, canções de Caetano Veloso (CD "Fina Estampa"), hinos religiosos na voz do padre-cantor Zezinho, músicas regionais do Pará e até entrevistas de jogadores do Flamengo e do técnico Zagallo, gravadas da TV no último dia 27 de maio.

O som da voz de Gledson só saltou da fita de número 16. Ela traz a
entrevista de um araponga do Exército com o soldado torturado. A seguir, um resumo do ocorrido, na voz do próprio Gledson. Para facilitar o entendimento, suprimiram-se trechos redundantes da fita:

1) O treinamento: "Houve uma instrução chamada PG, prisioneiro de guerra. Tem uma etapa chamada "cordada". As mãos são amarradas para trás e puxadas por um determinado percurso. Minha mão foi puxada com a corda apertada demais. E fiquei sem sensibilidade na mão direita" [o treinamento ocorreu na Base de Selva de Cabo Rosas, em Marabá, entre os dias 31 de maio e 16 de junho do ano passado".

2) A agulha: "Fui o primeiro a ser ouvido [em sindicância interna do Exército". Falaram: "se furar a tua mão, tu vais sentir?" Disse que não. O tenente Fujita [Angel Fujita Oliveira" trouxe uma agulha. E o capitão Alei [Salim Magluf Jr." furou o meu dedo. Perguntou se eu estava sentindo alguma coisa. Respondi que não. Ele disse que eu havia passado no teste da agulha";

3) O fogo: "Depois perguntou: e se eu queimasse a tua mão? Respondi que não sou idiota. Terminou o meu depoimento e eles pegaram um fogareiro de campanha. Eu me abaixei e ficaram os oficiais em pé, na minha frente. O capitão Alei falou para mim: "rapaz, vamos parar com essa palhaçada, já sabemos que você move essa mão". Eu não movimento a mão, não sou palhaço. "Então coloque a mão no fogo." Eu coloquei normalmente, botei minha mão no fogo, pelo menos uns 15 ou 30 segundos. Tirei a mão e perguntei: está bom? Com sarcasmo, disseram: "está bom? Bota a mão de novo". Eu botei. Tira. Eu tirei. Coloca de novo. Eu coloquei. Tira. Eu tirei";

4) O arremate: "Pegaram a minha mão direita e apertaram. E perguntaram: não está sentindo nada? Respondi que não. E insinuaram que eu estivesse fazendo algum tratamento para forjar, que eu estaria querendo a reserva. Insinuaram também que eu estaria fazendo um tipo de curso de masoquismo";
Sentindo-se ultrajado com a ausência de punição de seus superiores, o soldado Gledson recorreu à Procuradoria da República. Foi encaminhado ao Ministério Público Militar.

No último dia 20 de junho, o procurador Clementino Augusto Ruffeil, de Belém, apresentou denúncia contra o tenente Fujita e o capitão Alei. Acusou-os de lesão corporal grave" e "violência aviltante a inferior" Somadas, as penas podem chegar a sete anos de cana.
Fujita e Alei estão proibidos de comentar o assunto. Contactado na sexta-feira, o Exército também se negou a fazer considerações a respeito.
Passa da hora de Brasília voltar os olhos para o Comando Militar da Amazônia. Do contrário, não saberá o que dizer quando o brasileiro começar a perguntar: ora, se um oficial do Exército pode tratar assim um dos seus, o que não fará quando tiver diante de si um legítimo representante das "forças adversas"?




 

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