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26/01/2003 - 08h45

Sociólogo afirma que governo petista é "esquizofrênico"

RAFAEL CARIELLO
da Folha de S.Paulo, em Porto Alegre

"A luta entre a esperança e o medo continua dentro do governo Lula", diz o sociólogo Emir Sader, 59, professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e da USP e membro do conselho internacional do Fórum Social Mundial. Voz dissonante entre os organizadores do encontro que há três anos se realiza em Porto Alegre, Sader critica a política macroeconômica de Lula, não vê nela a transição prometida pelo ministro da Fazenda, Antonio Palocci Filho, e afirma haver "esquizofrenia" no governo, entre o conservadorismo econômico e o projeto de mudança.

Mas defende a participação do governo no evento, que entende como uma aproximação necessária com os movimentos sociais e uma oportunidade para que o fórum possa propor políticas concretas. Para ele, a chegada do PT à Presidência ajuda o fórum a evitar que fique "girando em falso".

A causa desse risco, diz, é a separação expressa na Carta de Princípios do fórum entre sociedade civil e Estado. "Tem que ser desqualificada essa fronteira, que segue uma lógica das ONGs."

Seguindo essa lógica, o fórum permanecerá, ele diz, produzindo "pequenas soluções", e não "grandes alternativas", além de correr o risco de estagnação.

Leia a seguir trechos da entrevista com o sociólogo.

Folha - O sr. tem defendido que o fórum se torne mais politizado. Isso significa ir além da divisão entre sociedade civil e Estado?
Emir Sader
- Todos os que assinam a carta do fórum, todos os que são contra o neoliberalismo têm lugar aqui. Tanto assim que quando o Lula foi eleito, o próprio secretariado imediatamente o convidou a vir. Significa que a fronteira demarcatória de quem está aqui é estar contra ou a favor do neoliberalismo. Quando aqueles que estão em Davos, ou que são contra o Fórum Social Mundial, dizem que não somos suficientemente amplos e não os convidamos a participar, dizemos "não, nós discutimos com vocês fora daqui". Aqui é um lugar em que todos que estamos contra o neoliberalismo nos reunirmos.

Na carta se diz que só podem participar aqueles que são da sociedade civil. É uma definição liberal. Sociedade civil contra o quê? Contra o Estado, contra o governo. É uma visão restritiva. Na sociedade civil está o melhor e o pior da sociedade: as forças do mundo do trabalho, os movimentos civis, mas também os banqueiros, a máfia e o narcotráfico. É uma noite de gatos pardos, um lugar de disputa de hegemonia.

Várias pessoas convidadas aqui, as ONGs dizem que não podem vir porque não pertencem à sociedade civil. Não podemos nos dar ao luxo de deixar de fora de uma luta como essa qualquer força que seja contra o neoliberalismo. Tem que ser desqualificada essa fronteira, que segue uma lógica das ONGs. Se seguíssemos essa lógica, não incluiríamos a discussão sobre democratização do Estado. Um projeto hegemônico alternativo não é só reorganizar a sociedade, mas também o Estado.

Na lógica das ONGs, teremos acumulação de pequenas soluções. Precisamos agrupá-las em grandes alternativas.

Folha - Para se politizar, o fórum não teria que hierarquizar objetivos para além da diversidade de demandas hoje apresentadas?
Sader
- As grandes iniciativas saem dos movimentos sociais, da experiência de lutas civis. O plebiscito sobre a Alca nasceu do primeiro fórum. Plebiscito que está incorporado à lógica da política externa do governo atual porque está nessa lógica a prioridade ao Mercosul. Quem coloca em prática são os governos. Mas é a luta social que dá as boas e as más soluções. Os governos não inventam, eles escolhem. Aumenta a taxa de juros porque há gente na sociedade que quer isso. Faz as escolhas corretas na política externa porque há forças sociais e políticas que pressionam nessa direção.

Folha - Mas quando o fórum procura se encaminhar para propostas mais concretas, não termina por simplesmente aderir à política formal, que já existe como espaço reconhecido para essa disputa?
Sader
-O fórum não pretende ter posições, mas propor políticas. Quando me perguntam o que o fórum acha da política econômica do Lula, respondo que nunca tematizamos como se sai da armadilha neoliberal.

Folha - Dá para escolher políticas a serem propostas sem desrespeitar a ambição de abarcar todas as muitas vozes?
Sader
- Sim. O objetivo utópico é aquele proposto pelo [líder zapatista] subcomandante Marcos: um mundo onde caibam todos os mundos. Mas dentro desses mundos tem que haver debate. Tem que haver polêmica e disputa de hegemonia. Se não se consolida uma hegemonia alternativa, não haverá superação do liberalismo.

Folha - Depois de três anos, o sr. acha que o fórum avança ou há risco de estagnação?
Sader
- Há um risco real de estagnação se continuarmos com essa lógica de múltiplas pequenas soluções e de fragmentação entre sociedade civil e o Estado. Nesse fórum, a grande novidade é que temos governos ligados a ele, como o de Lula e Lúcio Gutiérrez [do Equador], com os quais podemos dialogar e propor soluções.

Folha - É possível conciliar a atual política macroeconômica conservadora do Lula com essa vontade de transformação social que o identificaria com o fórum?
Sader
- A luta entre a esperança e o medo continua dentro do governo Lula. O medo é segurar as coisas com a taxa de juros alta. Lula tinha dito que não vale a pena ganhar se não for para mudar a política do [Pedro" Malan desde o primeiro dia. De fato essa é a fábrica da pobreza. É a política recessiva, de financeirização da economia. Estão pegando a alma do governo FHC.

Folha - Ao mesmo tempo se diz que isso faz parte de um processo de transição.
Sader
- A lógica de taxa de juros alta para segurar a inflação está em contradição com o programa do Lula, que fazia da virada da taxa de juros a transformação de um ciclo vicioso em um virtuoso.

Que se sinalize qual a via pela qual isso se dará. Porque não será pela autonomia do Banco Central. Não se vê qual é o horizonte. Essa política tende a se esgotar. Na superação dela é que pode se dar a virada. Hoje há uma dinâmica esquizofrênica no governo.

Acho que o Lula se dá conta de que essa é uma corrida interminável. Geram-se índices melhores, o governo não baixa a taxa de juros. Pioram, com mais razão não baixam os juros. É reproduzir a idéia da ditadura militar de que só se distribuiria renda quando a economia toda crescesse, ou do Fernando Henrique, de que só quando estabilizássemos a moeda poderíamos voltar a crescer. O governo tem que sinalizar que irá na direção oposta à lógica atual, senão, como diz o [sociólogo] Francisco de Oliveira, será apenas um capítulo da era FHC.

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