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26/01/2004 - 06h48

"País não precisa de política de planejamento familiar"

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CLÁUDIA COLLUCCI
da Folha de S.Paulo

O país não precisa de uma política de planejamento familiar, e sim de uma política de desenvolvimento. É o que acredita a demógrafa Elza Berquó, 70, presidente da Comissão Nacional de População e Desenvolvimento.

Ela considera que a proposta de incluir o planejamento familiar entre as contrapartidas exigidas das famílias beneficiadas pelo programa Bolsa-Família, feita por Emília Fernandes antes de sua demissão da Secretaria Especial de Políticas de Mulheres, revela um "total desconhecimento" do governo. "É ignorar completamente o fato de que, no Brasil, a taxa de crescimento populacional vem declinando desde a década de 70." Procurada pela Folha, Fernandes não quis comentar as declarações de Berquó.

A demógrafa afirma que a taxa de fecundidade no Brasil caiu em todas as regiões, inclusive no Norte e no Nordeste (quedas de 23,8% e 27%, respectivamente). Segundo ela, 44% das mulheres em idade reprodutiva no país têm menos de dois filhos -inferior ao nível de reposição. Apenas 6,2% delas têm quatro filhos ou mais.

Para Berquó, é possível que, no futuro, a continuar a queda da taxa de fecundidade, o país tenha que estimular a reprodução, seja incentivando as mulheres em idade fértil a ter mais filhos, seja ajudando aquelas com problemas de infertilidade. A seguir, trechos da entrevista dada à Folha.

Folha - O debate sobre planejamento familiar como forma de combate à pobreza ressurgiu recentemente após a ex-ministra Emília Fernandes cogitar incluir a medida entre as contrapartidas exigidas das famílias beneficiadas pelo programa Bolsa-Família. O que a sra. pensa sobre isso?

Elza Berquó
- É um total desconhecimento do que acontece no mundo e, em especial, no Brasil. Há um tempo, tentaram ressuscitar a idéia da explosão demográfica. Talvez porque nos grotões de pobreza que apareciam na telinha sempre havia muitas crianças. Em primeiro lugar, ninguém sabe se todas aquelas crianças eram filhos da mesma mãe. E aí vários formadores de opinião começaram a dizer que o problema do Brasil era a explosão demográfica. É ignorar completamente o fato de que, no Brasil, a taxa de crescimento populacional vem declinando sistematicamente desde a década de 70. O planejamento familiar tem que ser visto no macro da saúde integral. Tem que abranger muito mais dimensões do que essa de dizer "vamos lá dizer que essas mulheres não recebem o Bolsa-Família se não houver redução no número de filhos". Isso é fácil de dizer, difícil de comprovar e não resolve nada.

Folha - Mas isso tem um forte apelo popular. As declarações da ex-ministra repercutiram muito.

Berquó
- Falta muito conhecimento. Não se pode cobrar isso da população, mas do governo, sim. O governo tem obrigação de saber ou, se não sabe, de se informar. Precisamos fazer uma limpeza de terreno na área das idéias e das concepções para que as pessoas possam entender o que é direito sexual e o que é direito reprodutivo. Isso está na alçada dos direitos humanos. Como garantir? Com informação, com educação e com acesso a meios para isso.

Folha - A decisão final do governo sobre a questão do planejamento familiar foi de ampliar as informações à população. É o caminho?

Berquó
- Acho que informação nunca é demais. O que deveria ser feito é uma ampla campanha sobre o sexo com dupla proteção, tanto para a concepção como para a Aids. É preciso juntar essas duas questões. Tudo isso é divorciado de pobreza. Hoje nós já estamos com 44% das mulheres em idade reprodutiva no país com fecundidade abaixo de dois filhos. Só temos uma fecundidade maior [mais de quatro filhos por mulher] nos bolsões de pobreza. Mas isso só responde a 6,2% do total. No Brasil, entre 1991 e 2000, a queda da fecundidade foi de 12%. No Norte, ela passou de 4,2 filhos para 3,2 filhos, uma queda de 23,8%. No Nordeste, de 3,7 para 2,7 filhos, uma queda de 27%. No Sudeste, caiu muito mais. Na área rural, a queda foi de 19%.

Folha - Por que a taxa de fecundidade cai tanto?

Berquó
- Por vários motivos. Antigamente, as famílias tinham muitos filhos porque sabiam que, com a alta taxa de mortalidade infantil, pelo menos a metade iria morrer. E precisavam que uma parte sobrevivesse para sustentar a família na velhice. Com a Previdência Social, o governo assume esse papel. Outro fator é a questão do crédito direto ao consumidor, que também é da década de 70. Isso significa que as pessoas passaram a ter aspirações de consumo e a pensar um pouco mais se vão ter três filhos e comprar alguma coisa, ou se vão ter dois. Além disso, as mulheres passaram a ficar muito mais expostas ao setor da saúde e começaram a receber informações sobre as pílulas, laqueadura etc. O quarto fator fundamental foi a verdadeira revolução das telecomunicações no Brasil. Isso tudo acontece de 70 para a frente. No momento em que os sinais de TV alcançam os rincões mais afastados, você veicula valores. Nas telenovelas, por exemplo, as famílias são sempre pequenas.

Folha - Como estão os serviços de planejamento familiar hoje? As mulheres estão conseguindo ter acesso aos contraceptivos?

Berquó
- Na verdade, sei muito pouco sobre o que está acontecendo. Estamos num vazio de informação da famosa PNDS (Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde). A última foi de 96. Achamos essa pesquisa fundamental porque ela atualiza, em termos nacionais, como está a contracepção. Fizemos uma pesquisa acompanhando homens e mulheres no momento em que chegavam para fazer a esterilização. Observamos que só 30% conseguiram.
Muitos dos médicos não concordavam com os critérios da portaria que autoriza a laqueadura, ou porque achavam que as mulheres eram muito jovens ou porque tinham poucos filhos. Além disso, como as laqueaduras são feitas em hospitais, as mulheres têm de competir com os leitos de outras especialidades. Os homens têm mais sorte porque as vasectomias podem ser feitas em ambulatórios.

Folha - Existe algum tipo de política de planejamento familiar que o país deveria adotar?

Berquó
- Não. Durante muitos e muitos anos a chamada esquerda deste país, juntamente com os movimentos de mulheres, conseguiu impedir que o país tivesse uma política de população. É muito complicado porque uma política de população acaba intervindo, em última análise, nos direitos das pessoas de ir e vir, de se reproduzir ou não se reproduzir. Esses dois elementos são básicos na questão demográfica.

Você quer povoar, tudo bem. Os Estados dão incentivos para atrair as indústrias, levar o desenvolvimento. É mais fácil isso do que impor que as pessoas tenham que ficar lá ou aqui. Você dá o incentivo e as pessoas se movimentam. Não podemos interferir nesse direito. O país não precisa de política de população. Ele precisa de política de desenvolvimento.

Folha - Vemos hoje grandes cidades, como São Paulo, saturadas em vários setores. O país deveria investir numa política de ocupação racional do território?

Berquó
- Não há dúvidas de que precisa sair do eixo. Mas é necessário saber se há condições. Acho que, de um lado, com a informática desenvolvida, você pode ter indústrias de tecnologia de alto padrão que não precisam estar nas grandes cidades.

Há outras formas de tentar um desenvolvimento do Nordeste, como a transposição do rio São Francisco. Não sei se isso é possível do ponto de vista científico, mas, se for, trará grandes benefícios. O turismo no Nordeste, se for bem implementado, também trará muitas melhorias. Temos que dar força para que o país se desenvolva em outra direção.

Folha - Hoje há uma inversão da porta giratória da migração em São Paulo, com mais pessoas saindo do que entrando. Isso deve persistir?

Berquó
- Não tenho dúvida de que sim. Por outro lado, a cara da cidade está mudando. Você vê coreanos, latino-americanos. Você está substituindo um pouco os nordestinos. Todo ano, por volta de 70 mil nordestinos deixam a cidade. Mas, mais do que isso, a cidade é caracterizada pelo fluxo de entrada e saída.

Folha - Pesquisa da Seade mostra que São Paulo terá 2 milhões de pessoas com mais de 60 anos em 2025, enquanto a parcela de jovens e adultos encolherá. É uma tendência nacional?

Berquó
- Sim, é uma tendência nacional. O fato de o índice de população idosa vir crescendo na população total é diretamente ligado à queda da fecundidade. Como nascem menos crianças relativamente, o grupo de menos de 15 anos vai pesando cada vez menos e o outro grupo vai pesando cada vez mais.

Folha - Qual é o impacto disso na mudança demográfica da cidade de São Paulo e do país?

Berquó
- O que no futuro vai afetar é o que está acontecendo no Primeiro Mundo. Como a fecundidade caiu muito e como a população envelheceu muito, além de a expectativa de vida ter se elevado, eles não têm mão-de-obra jovem. Isso é um problema que enfrentaremos lá na frente, por volta de 2025, 2030. Na Europa, há mais de dez anos o número absoluto de idosos já ultrapassou o de jovens.

Nosso país tem um elemento relativamente novo, chamado de rejuvenescimento da fecundidade. Nos países desenvolvidos, são baixíssimas essas proporções, não chegam a 10%.
As mulheres brasileiras de 35 anos ou mais estão tendo cada vez menos filhos. O pico da fecundidade, em 1980, estava entre 25 e 29 anos. Em 1991, ele recuou uma faixa etária, passando a ser entre 20 e 24 anos. Em 2002, permaneceu aí. Por outro lado, há aumento na faixa mais jovem ainda [20% das gestações são de adolescentes].

Isso mostra que ainda temos um fôlego, muito embora essa população jovem vá pesar cada vez menos e a outra, cada vez mais. É possível que, no meio do caminho, observando o que outros países estão enfrentando, possamos ter elementos para que essas mulheres de 25 a 39 anos voltem a ter interesse em se reproduzir. Os parceiros têm que ser generosos no sentido de um ajudar ao outro porque, do contrário, as mulheres não vão querer se reproduzir.

Folha - Mas também tem o fator infertilidade. As mulheres estão deixando para engravidar mais tarde e muitas encontram dificuldades de gravidez...

Berquó
- É um ponto importante porque, como a expectativa de vida se amplia cada vez mais, a pessoa pode viver muitas experiências: ou adia o casamento ou, se antes não queria filhos, agora valoriza a reprodução. Também esse direito reprodutivo tem de ser satisfeito.

Eu não sei se é um assunto de saúde pública. Não sei se há recursos. Mas pode ser que um dia, quando o país enfrentar uma baixíssima taxa de fecundidade, como já acontece em outros países, você vá estimular, sim.

Hoje temos muitas mulheres tentando uma reprodução após os 40 anos, ou até antes, que não encontram no serviço público a possibilidade de tratamento, de um diagnóstico correto ou até de um bebê de proveta.

Folha - A sra. é uma das pioneiras no estudo da população negra no Brasil. Como vê essa questão das cotas nas universidades?


Berquó
- Sou a favor das ações afirmativas. Não sei se o caminho são exatamente as cotas, mas tem que ter para começar. Se você deixar as coisas agirem normalmente, você não sai do caos da desigualdade. A população negra está na base da pirâmide social. É claro que vão encontrar obstáculos, mas é importante porque a identidade negra está firme. Se você se identifica com a população negra, ou afrodescendente, você vai lá disputar essas cotas. Quando essa roda estiver girando, você não vai precisar mais disso porque essas pessoas vão estar preparadas para enfrentar o vestibular. Tem que ter cotas, senão não entra.

Folha - O reitor da USP, Adolpho José Melfi, disse não ser simpático à adoção de cotas para negros porque isso causaria mais discriminação. Existe esse perigo?

Berquó
- O negro já é discriminado na sociedade, esteja na universidade ou não. Ele já está acostumado, mas aí estará discriminado dentro da universidade. Acho que ele está disposto a correr esse risco. Ações afirmativas são uma das possibilidades de desconstruir o racismo no Brasil.
 

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