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21/12/2003 - 03h48

Ciência em Dia : Futuros xavantes

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MARCELO LEITE
editor de Ciência da Folha de S.Paulo

Culturas alicerçadas sobre mitos, como as de muitos índios do Brasil, parecem prisioneiras de uma noção de tempo em que o futuro, se é que cabe, não tem lá muita importância --tudo que acontece ou pode acontecer acaba subentendido como uma espécie de reedição do que há de essencial nos mitos de fundação. Isso, é claro, até entrarem em contato --ou choque-- com os brancos e sua marcha obstinada para a frente, convictos de que o futuro é moldável a golpes de tecnologia.

A boca entortada pelo cachimbo racionalista tende a emitir juízos somente sobre os limites da cultura alheia, mas é certo que a tecnociência contemporânea também encontra os seus. Não tanto, porém, da parte de outra cultura, e sim do ambiente: alguns golpes afrontam sua natureza dúctil, e o avanço estanca.

Essas generalidades sobre o encontro e o desencontro de culturas foram suscitadas pela leitura de texto incomum, um prefácio --para uma obra acadêmica-- do chefe Tsuptó Brupréwn Wairi, da aldeia xavante Etéñitépa, na área indígena Pimentel Barbosa (Mato Grosso).

Trata-se de "The Xavánte in Transition" (Os Xavantes em Transição), lançado há coisa de um ano pela University of Michigan Press, de Carlos Coimbra Jr., Nancy Flowers, Francisco Salzano e Ricardo Santos. O livro, premiado como melhor obra interdisciplinar de 2003 pela Divisão de Antropologia Geral da Associação Americana de Antropologia (EUA), deve sair no ano que vem em português, pela Fiocruz.

Em 22 e 23 de julho de 2002, Coimbra e Santos foram mais uma vez a Etéñitépa apresentar ao "warã" (conselho dos homens) os resultados de uma década de pesquisas sobre saúde na aldeia. O depoimento de Tsuptó colhido na ocasião e registrado no livro se abre com uma queixa sobre as moléstias inexistentes antes da chegada dos brancos, diabetes e tuberculose: "Nossos organismos, nossos corpos, os corpos de nossas crianças, não podem fazer frente a tudo isso; não podem resistir. Porque essas não são doenças nossas. Elas vêm de fora".

Parece a situação clássica do choque de culturas, impregnada da eficácia dolorosamente material que elas podem adquirir e fadada a produzir somente incompreensão, conflito e sujeição do mais fraco. Toda cultura, porém, comporta, e precisa comportar, alguma dose de pragmatismo e flexibilidade, sobretudo nas ocasiões em que é confrontada com o desconhecido. Nessas situações, ganha em relevo aquele que é talvez o único equipamento universal do homem: a alternativa ao instinto que consiste na capacidade de calibrar reflexivamente suas ações de acordo com a disposição dos objetos reais. Na falta de melhor expressão, conhecimento empírico.

O xavante Tsuptó, por exemplo, não é tão prisioneiro assim de um tempo sem futuro. Para enfrentar a ameaça que vem de fora, ele se mostra disposto a forjar uma aliança até mesmo com um tipo peculiar de estrangeiro, o estudioso: "Bem, eu acho que essas coisas [as doenças] devem ser estudadas em maior profundidade, de modo que, se soluções para essas coisas que estão acontecendo puderem ser encontradas, elas serão".

Note que não há fé cega na ciência, pois o chefe de Etéñitépa admite que haja coisas impossíveis de solucionar. Algo em que a maioria dos cientistas convencionais não acredita, pois são prisioneiros de uma noção de tempo em que o futuro sempre esteve sob controle do homem.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
 

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