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15/06/2004 - 06h47

Cigarra usa número primo para sobreviver

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SALVADOR NOGUEIRA
da Folha de S.Paulo

O ataque das cigarras --como tem sido chamada a emergência sincronizada de algumas espécies do inseto, num ciclo exato de 17 anos-- pode ser resultado não do acaso, mas sim de uma forte pressão seletiva. É o que sugere um estudo de pesquisadores brasileiros, que aponta uma solução para o mistério que tem encantado os americanos nas últimas semanas.

A pesquisa faz uso das possibilidades de simular em computador o processo de evolução por seleção natural --área de estudo chamada genericamente de "vida digital". A idéia é criar uma espécie de videogame em que criaturas são simuladas por programas. Elas se reproduzem e sobrevivem como coisas vivas, de acordo com a maior ou menor adaptação.

No caso das cigarras, os pesquisadores conceberam um modelo que mostrasse como poderia emergir o estranho padrão desses insetos. Muitas espécies de cigarra têm períodos diferentes de amadurecimento, com ciclos vitais de duração variada, enquanto as larvas ficam sob a terra. Mas sete espécies do gênero Magicicada têm uma característica adicional: elas são sincronizadas, ou seja, saem do chão todas ao mesmo tempo, para cerca de duas semanas de canto ensurdecedor, acasalamento e postura de ovos.

Para esses grupos sincronizados, é curioso notar que os ciclos normalmente acontecem em 13 ou 17 anos. São números primos, ou seja, divisíveis apenas por si mesmos e por um.

É difícil acreditar que a natureza tenha escolhido aleatoriamente esses números para as cigarras. Apostando nisso, o grupo encabeçado por Paulo Campos, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, e composto por Viviane de Oliveira, Ronaldo Giro e Douglas Galvão, da Unicamp, decidiu verificar se a seleção natural poderia ter algo a ver com a coisa.

Números primos altos

"Queríamos descobrir se ciclos de vida em números primos significavam alguma vantagem seletiva para os indivíduos que os desenvolvem", afirma Campos. "No início não sabíamos como começar a abordar o problema, mas logo surgiu a idéia de modelar isso utilizando um autômato celular estocástico --nesse modelo, as cigarras e os predadores evoluem no computador, no estilo dos trabalhos de vida digital."

A estratégia deu certo. Ao longo das gerações simuladas, eles perceberam que as cigarras começavam a sobreviver mais conforme seus ciclos de vida se aproximavam desses números primos altos. Eram números que evitavam ao máximo o confronto com seus predadores naturais (pássaros, por exemplo), que por sua vez estariam lá todo o tempo.

Mais ainda, a estratégia só funcionava se a espécie estivesse toda sincronizada --todas as cigarras precisavam sair do chão ao mesmo tempo. "Essa sincronização é extremamente relevante", diz Campos. "Porque, quando saem todas juntas, uma fração delas é comida pelo predador, mas o restante sobrevive, porque o predador já está saciado. Isso é, de fato, uma estratégia."

Agora, se a idéia é tão boa, por que mais espécies não acabaram adotando esse modo de vida? É um dos mistérios que ainda vão permanecer.

"Não se sabe por que outras espécies não evoluíram para esse estado. Possivelmente por não poderem suportar longos períodos de hibernação (sua estrutura física não possibilita isso) ou porque elas nunca estiveram ameaçadas de extinção em qualquer momento de sua existência", diz Campos. A ameaça de aniquilação, de fato, é notória por sua capacidade de incentivar a emergência de soluções criativas para a sobrevivência dos indivíduos e da espécie.

A pesquisa brasileira oferece uma resposta realista ao problema. Outras simulações já haviam obtido sucesso no passado, mas tratavam os predadores de forma totalmente irregular, atribuindo também a eles ciclos de incubação próprios. "Não foi provada a existência de predadores que se comportem dessa maneira. Existem, sim, predadores como pássaros, que estão lá o tempo todo. Eles não têm tempo de incubação."

O estudo de Campos e seus colegas supera essa dificuldade, mas será muito difícil confirmar de outra maneira se ele é realmente a resposta para o problema.

"Realizar experimentos com sistemas ecológicos é uma coisa bastante complexa. Primeiro porque a escala evolutiva não é curta --ou seja, é necessário deixar o sistema evoluir por séculos para obter um resultado preciso e confiável. Segundo, você tem de eliminar todas as fontes de perturbação do sistema, o que é muito difícil", diz o pesquisador. "Por isso é tão complicado reconstruir nossa história evolutiva de uma forma unívoca e precisa."

A pesquisa foi submetida para publicação no periódico científico "Physical Review Letters".

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