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10/11/2002 - 11h14

Livro revela célebre viagem do navio Endurance à Antártida

CLAUDIO ANGELO
da Folha de S.Paulo

A Antártida derrotou Ernest Shackleton por três vezes. Em 1902, na sua primeira tentativa de alcançar o pólo Sul, como membro da expedição de Robert Falcon Scott, quase foi abatido pelo escorbuto. Em 1907, comandando a própria expedição, ele teve de dar meia-volta a 150 km de se tornar o primeiro homem no pólo. E, em 1915, teve seu navio afundado ao tentar realizar a primeira travessia do continente a pé.

Dito assim, chega a parecer irônico que esse profissional do fracasso seja considerado o maior herói polar de todos os tempos. Mas um olhar cuidadoso revela que o título é mais do que justo. Esse olhar está agora ao alcance do leitor brasileiro.

Oitenta anos após a morte de sir Ernest Shackleton (1874-1922), é finalmente lançado no país o livro "Sul" (Editora Alegro), relato escrito pelo próprio explorador sobre a célebre viagem do navio Endurance ao continente (de 1914 a 1916), que se transformaria no conto arquetípico de bravura e resistência humana e cimentaria o britânico no topo do panteão dos mitos polares.

A narrativa conta como Shackleton e sua tripulação de 27 homens viveram durante seis meses sobre blocos de gelo flutuantes no mar de Weddell após perder o Endurance, que fora aprisionado e esmagado pela banquisa.

Como, depois, em três botes, alcançaram a ilha Elefante, na ponta norte da península Antártica. E, por fim, como o comandante e cinco companheiros cruzaram também de bote os 1.500 km que separam Elefante da ilha Geórgia do Sul -onde havia uma estação baleeira que poderia providenciar socorro- pela passagem de Drake, a porção de mar mais tormentosa do planeta. Nenhum homem morreu.

Para um Império Britânico que ruía sob os efeitos da descolonização e da Primeira Guerra Mundial, ao mesmo tempo em que ainda digeria a conquista do pólo pela Noruega de Roald Amundsen e o desastre subsequente da expedição polar de Scott (que morreu juntamente com quatro de seus homens após ter chegado em segundo lugar ao pólo, em 1912), a saga dos homens do Endurance teve gosto de vitória.

Um cavaleiro de Sua Majestade, servindo no fim do mundo, restaurava os brios da pátria ao conduzir bravamente seus homens com segurança na região mais inóspita do planeta, enfrentando as piores condições meteorológicas, fome, sede e baleias assassinas durante dois anos. Embora alimentado pelos mesmos ideais georgianos, Shackleton tinha uma visão bem menos romântica da coisa.

Marinheiro de espírito prático e sem os arroubos literários de seu conterrâneo Scott, o comandante do Endurance precisou da ajuda de um jornalista neozelandês para compilar seus diários de viagem em algo apresentável ao público. Ainda assim, "Sul" é uma narrativa em grande parte desapaixonada, que parece bem menos emocionante do que livros que foram escritos posteriormente sobre a viagem -como "Endurance", de Caroline Alexander, publicado em 1998.

Por gelo abaixo
A expedição de Shackleton partiu da Inglaterra rumo à Antártida em agosto de 1914, uma semana depois da entrada do Reino Unido na guerra. A idéia original era atravessar o mar de Wedell (mais próximo da costa da América) e atravessar o continente, saindo no mar de Ross (mais próximo da Nova Zelândia). Ali os 28 homens da travessia seriam resgatados pelo navio Aurora, que partiria da Tasmânia.

O Endurance (resistência, em inglês), de casco reforçado, era o melhor navio disponível das ilhas britânicas na época para a tarefa. Mas não conseguiu fazer frente ao campo de gelo do mar de Weddell, no qual foi aprisionado em 18 de janeiro de 1915. A partir daí, o navio começou a derivar para noroeste até ser esmagado pela banquisa em 26 de outubro e afundar um mês depois.

Depois de reunir toda a comida de bordo e as três baleeiras do Endurance -o James Caird, o Stancomb Wills e o Dudley Docker-, a tripulação iniciou a travessia do mar congelado rumo à ilha Paulet, a porção de terra firme mais próxima na qual seria possível encontrar comida, a 640 km do local do naufrágio e a 2.200 km em linha reta do local onde o barco fora aprisionado.

Foram seis meses vivendo sobre placas de gelo, algumas com de poucos centímetros de espessura, sob a ameaça constante de que o "chão" se abrisse durante a noite e tragasse os homens para o mar gelado, ou que uma orca confundisse os homens com focas e rompesse as placas em busca de uma refeição -como, de fato, aconteceu.

Como não sabiam até quando ficariam na banquisa, os tripulantes do Endurance passaram a racionar comida e a viver basicamente de carne e gordura de foca. Sobre a gordura, que ainda usavam como combustível para cozinhar, Shackleton escreveu: "Até recentemente, só pensar nela dava náuseas. Agora nós positivamente precisamos dela. Bebemos com avidez o óleo grosso, com aspecto de óleo de ferrovia e gosto de óleo de fígado de bacalhau".

Em março de 1916, derivando sobre o gelo, o grupo perdeu a ilha Paulet. A 110 km dela, a banquisa estava ainda muito sólida para uma viagem de barco, mas muito frágil para que a tentassem alcançar de trenó. As esperanças, agora, se voltavam para a ilha Elefante, alcançada em 14 de abril de 1916 -após 497 dias no gelo e no mar, sem pisar em terra firme.

Travessia
Mas o pior ainda estava por vir. Certo de que o grupo não aguentaria o inverno na ilha Elefante -um lugar que assusta até no verão-, Shackleton decidiu procurar ajuda no porto civilizado mais próximo ao norte: a ilha Geórgia do Sul, separada de Elefante por 1.500 km pela passagem de Drake.

A bordo do bote James Caird, de seis metros de comprimento, o "chefe", como era chamado o comandante, passou 16 dias entre ondas de mais de oito metros com cinco companheiros, só para aportar no lado errado da ilha. Num último esforço, a Geórgia do Sul ainda teve de ser cruzada a pé. Os 22 homens que ficaram na ilha Elefante só seriam resgatados quatro meses depois, todos vivos.

Durante toda a viagem, Shackleton conseguiu manter elevado o moral do grupo. Especialmente no inverno, período em que quase não há luz na Antártida e em que o tédio de uma tripulação presa na banquisa pode fazer estragos.

O "chefe" organizava festas e corridas de trenó. Religioso, salvou parte de uma Bíblia dos destroços do Endurance. Neutralizou conflitos dentro do grupo e, durante uma parada para descanso na travessia das geleiras da Geórgia do Sul, mentiu para seus companheiros Frank Worseley e Thomas Crean, que haviam caído no sono após três dias andando sem dormir: "O sono nessas condições se funde imperceptivelmente com a morte. Após cinco minutos, eu os sacudi até que recuperassem a consciência, disse-lhes que haviam dormido por meia hora e que chegara o momento de partir".

Se, por um lado, Shackleton transformou o fracasso em glória, por outro fica devendo ao leitor um relato mais vívido. Sem o carisma nem a competência do seu compatriota e ex-subordinado, Scott conseguiu, com sua verve literária, conquistar os leitores britânicos com "A Viagem do Discovery" e, mais tarde, com seus diários -que o redimiram perante o público após a morte.

Shackleton é comedido. Mais preocupado em sobreviver do que em deixar uma grande obra literária à humanidade, ele dedica a maior parte do relato a anotações monótonas das condições de navegação no mar de Weddell, do tipo: "avançamos tantas milhas" ou "uma sondagem revelou a profundidade de quatro mil e quatrocentos metros, com solo de lodo azulado".

O leitor que espera grandes emoções a cada página precisará de paciência com Shackleton. Os dias em "Sul" correm longos e sem grandes acontecimentos -afinal, por mais emocionante que ela pareça, a vida no mar e na Antártida é exatamente assim.

A cronologia da viagem é confusa e, por vezes, é preciso anotar as datas principais para não soçobrar na leitura. Mas a travessia vale a pena. Como escreveu o próprio comandante, ao chegar à estação baleeira na Geórgia do Sul: "Ultrapassamos a superficialidade do mundo. Enfrentamos a dor e a fome, e triunfamos. Caímos e rastejamos e alcançamos a glória. Contemplamos a face de Deus em todo seu esplendor e escutamos a voz do coração da natureza. Atingimos a essência pura e nua da alma humana".

"Sul"
de Ernest Shackleton
504 págs., R$ 79
Editora Allegro, r. Elvira Ferraz, 198, Vila Olímpia, CEP 04552-040, SP, tel. 0/xx/11/3845-8555

 

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