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09/02/2003 - 11h27

Cresce a importância das experiências de cientistas amadores

FREEMAN DYSON
Especial para a Folha de S. Paulo

Timothy Ferris é um astrônomo amador sério. Ele despende uma grande quantidade de tempo e dinheiro vagando à noite por planetas, estrelas e galáxias. Ele é dono de um lugar chamado Observatório Rocky Hill, na Califórnia, onde pode alegrar seu coração observando estrelas com telescópios de tamanho modesto e excelente qualidade.

Ferris pertence a uma comunidade internacional de observadores que está conectada pela internet, assim como pelo céu, onde se encontra em casa. Os astrônomos amadores sérios, a menos que sejam aposentados ou ricos, precisam ter um emprego para sustentar seu vício noturno. Ferris tem um emprego durante o dia como autor de livros que explicam ciência para o público leigo. Ele escreveu vários livros que são amplamente lidos e realmente reduziram o nível de analfabetismo científico da população dos EUA.

"Seeing in the Dark" (Vendo no Escuro, Ed. Simon and Schuster) é semelhante aos demais em certos aspectos e diferente em outros. Assim como os anteriores, é factualmente preciso, contém informações abundantes sobre o universo em que vivemos e torna a informação facilmente apreensível, ao temperá-la com boas histórias.

Diferentemente de seus outros livros, é uma história de amor e conta como Ferris se apaixonou pela astronomia aos 9 anos e como, desde então, essa paixão enriqueceu sua vida. Mas ele não escreve muito sobre si mesmo. O livro é principalmente uma galeria de retratos dos diversos e coloridos personagens que compartilham sua paixão, com uma descrição das contribuições que fizeram à ciência da astronomia.

Ferris procurou seus colegas astrônomos amadores, os visitou em suas casas e observatórios, escutou as histórias de suas vidas e os viu trabalhar. Um desses colegas é Patrick Moore, que também se sustenta escrevendo livros de divulgação científica durante o dia. À noite, ele explora o céu. Ferris o visitou na aldeia inglesa de Selsey, onde ele vive e trabalha.

Muitos anos atrás, antes que qualquer ser humano ou instrumento tivesse observado do espaço o lado escuro da Lua, Moore a observava sistematicamente com um pequeno telescópio.

A Lua normalmente mantém uma orientação fixa enquanto gira ao redor da Terra, de modo que apenas uma face é visível.

Mas ela oscila ligeiramente em sua órbita, de modo que às vezes certas regiões que normalmente são invisíveis podem ser vistas na borda da face visível, extremamente reduzidas. Moore estava estudando essas regiões geralmente invisíveis num momento em que a oscilação da Lua estava no máximo e descobriu Mare Orientale, a maior e mais bela cratera de impacto na Lua.

Moore lhe deu esse nome porque está escondida atrás da borda oriental da Lua e porque é uma região circular escura semelhante às regiões sombrias do lado frontal da Lua, que o astrônomo amador Johannes Hevelius chamou de "mares" quando as mapeou em 1647. Hevelius foi um cervejeiro de Gdansk (Polônia) que fez o primeiro mapa preciso da Lua. Mesmo nas ocasiões de oscilação máxima, apenas uma pequena parte de Mare Orientale pode ser vista da Terra.

Somente um observador com longa experiência e profundo conhecimento da topografia lunar poderia ter reconhecido na visão fragmentada da borda da Lua o que Moore conseguiu ver. Os astrônomos profissionais não têm tanta experiência ou tanto conhecimento. Somente um amador poderia ter descoberto Mare Orientale, porque somente um amador tem o tempo e a motivação para estudar uma única região da Lua com dedicação exclusiva.

A ciência dos amadores

Patrick Moore é um dos muitos exemplos que ilustram o tema principal do livro de Ferris: a importância dos amadores na exploração do universo, não somente em séculos passados, mas ainda hoje. Patrick Moore era um amador à moda antiga quando descobriu o Mare Orientale, observando laboriosamente a Lua pelo telescópio, desenhando mapas de suas observações com lápis e papel.

Hoje os amadores observam o céu com câmeras eletrônicas digitais, registram as imagens com computadores pessoais e usam software disponível no comércio. O papel dos amadores tornou-se mais importante nos últimos 20 anos, devido ao advento de câmeras eletrônicas, computadores e software produzidos em massa, por baixo preço. Hoje os amadores sérios podem comprar equipamentos que poucos observatórios profissionais podiam ter 20 anos atrás.

Os computadores pessoais são usados não apenas para registrar dados, mas para se comunicar rapidamente com outros observadores e coordenar as observações ao redor do mundo. Existem muitas áreas de pesquisa a que somente astrônomos profissionais podem se dedicar, estudando objetos tênues nas distantes profundezas do espaço, usando grandes telescópios que custam centenas de milhões de dólares para se construir e operar.

Somente profissionais podem chegar a meio caminho de volta ao início dos tempos, explorando o universo primitivo, quando as galáxias eram jovens e as estrelas mais antigas estavam nascendo. Somente profissionais têm acesso a telescópios espaciais capazes de detectar os raios X emitidos pela matéria aquecida a temperaturas extremas que cai nos buracos negros. Mas existem outras áreas de pesquisa em que uma rede de amadores bem equipados e coordenados pode se sair tão bem quanto os profissionais.

Os amadores têm duas grandes vantagens: a capacidade de observar extensas áreas do céu repetidamente e a capacidade de manter observações por longos períodos. Em consequência disso, os amadores frequentemente são os primeiros a descobrir eventos imprevisíveis como tempestades na atmosfera dos planetas e explosões catastróficas de estrelas.

Eles competem com os profissionais na descoberta de objetos passageiros como cometas e asteróides. Muitas vezes um amador faz uma descoberta e um profissional lhe dá seguimento, com observações mais detalhadas ou análises teóricas, e os resultados são publicados em uma revista profissional com o amador e o profissional como co-autores.

Palomar e os telescópios gigantes

No monte Palomar na Califórnia existem dois famosos telescópios: um, enorme, de 200 polegadas (490 cm), e um pequeno, de 18 polegadas (44 cm). O de 200 polegadas foi durante muitos anos o maior do mundo, explorando as áreas distantes do universo com uma sensibilidade inigualável. O menor deles já estava na montanha antes do maior -e fez descobertas igualmente importantes. Ele foi criado pelo astrônomo amador alemão Bernhardt Schmidt (1879-1935).

Schmidt era um óptico profissional que ganhava a vida produzindo lentes e espelhos e trabalhou como convidado sem remuneração no observatório da Universidade de Hamburgo. Em 1929, ele inventou um novo telescópio que produzia imagens fotográficas nitidamente enfocadas de um amplo campo de visão. Ele construiu e instalou o primeiro telescópio Schmidt em Hamburgo. O telescópio Schmidt possibilitou pela primeira vez fotografar rapidamente grandes áreas do céu.

Comparado com os telescópios anteriores, o Schmidt podia fotografar uma área cerca de cem vezes maior a cada noite. O telescópio de 18 polegadas no monte Palomar foi o segundo Schmidt a ser construído e o primeiro a ser usado em um observatório sobre uma montanha com boa visão astronômica. Fritz Zwicky, um astrônomo profissional suíço, compreendeu o potencial da invenção de Schmidt e instalou o telescópio de 18 polegadas na montanha em 1935.

Ele o utilizou para fazer a primeira observação fotográfica rápida do céu, fotografando grandes áreas por noite e mapeando a posição de centenas de milhares de galáxias. Em consequência dessa pesquisa, Zwicky fez duas descobertas fundamentais. Ele descobriu que as galáxias têm uma tendência universal a se unir em aglomerados. E descobriu que a massa visível das galáxias é insuficiente para explicar essa aglomeração.

A partir das posições observadas e das velocidades das galáxias, Zwicky calculou que os aglomerados deviam conter uma massa invisível cerca de dez vezes maior que a massa visível.

A dinâmica do Universo

A descoberta da massa invisível, feita com o pequeno telescópio Schmidt, inaugurou um novo capítulo na história da cosmologia. Nossas explorações posteriores do cosmos confirmaram que Zwicky estava certo, que a massa escura invisível domina a dinâmica do Universo.

Astrônomos amadores e profissionais em todo o mundo estão usando telescópios modelo Schmidt para continuar a revolução que Schmidt e Zwicky iniciaram. O próprio Schmidt não viveu para ver o triunfo de sua invenção. Quando Hitler subiu ao poder na Alemanha em 1933, ele ficou tão desgostoso que perdeu a esperança e silenciosamente bebeu até a morte. David Levy é um astrônomo amador de estilo moderno.

Ele observa em sua casa no Arizona, onde tem três modestos mas bem equipados telescópios, dois deles projetados por Schmidt. Levy também visita frequentemente como observador convidado o Observatório Palomar na Califórnia, com cujos profissionais colabora. Em Palomar ele usou o telescópio de 18 polegadas original de Zwicky, que continua sólido e fazendo descobertas importantes após 60 anos de uso intenso.

Seus colaboradores eram Eugene e Carolyn Shoemaker, até a morte precoce de Eugene num acidente de carro. Hoje ele continua a colaboração com Carolyn.

Desintegração de cometas

O fato mais famoso dessa colaboração ocorreu em 1993, quando Eugene ainda vivia. Foi a descoberta do cometa Shoemaker-Levy 9, que foi visto no processo de desintegração ao passar próximo demais do planeta Júpiter. O recém-descoberto cometa estava naquele momento se partindo em 18 pedaços. Estes se afastaram até parecer um colar de pérolas, estendidos em linha reta, cada um com sua cauda de gases e poeira brilhando à luz do Sol distante.

Depois de alguns dias de observação e cálculos cuidadosos, ficou claro que os pedaços do cometa estavam destinados a se chocar com Júpiter 16 meses depois. Essa foi a primeira vez na história da astronomia em que dois objetos celestes foram vistos em colisão. Na época em que Júpiter estava sendo bombardeado, julho de 1994, eu tive a sorte de ser convidado pelo astrônomo amador Gilbert Clark para a cúpula ocupada por um telescópio de 24 polegadas (58,8 cm) no monte Wilson, Califórnia.

Clark é um oficial aposentado da marinha que fundou e dirige uma fundação beneficente chamada Telescopes in Education, ou TIE [Telescópios na Educação". O telescópio de 24 polegadas foi emprestado pelo Observatório do Monte Wilson para a TIE e instrumentado de modo a ser operado por controle remoto. Enquanto Clark e eu estávamos na cúpula, o telescópio era operado por crianças em uma escola na Virgínia.

Podíamos ver as mesmas imagens que as crianças estavam vendo - e escutávamos suas vozes. Elas estavam decidindo para onde apontar o telescópio. Olharam intermitentemente para vários objetos, galáxias e aglomerados de estrelas nas profundezas do céu, mas sempre voltavam para Júpiter. Na tela via-se Júpiter -não a imagem conhecida do planeta, com suas faixas horizontais numa atmosfera nebulosa, mas um Júpiter ferido, com cinco grandes marcas negras nos locais onde os fragmentos do cometa o haviam atingido.

Para mim o aspecto mais notável era ver Júpiter girar. As feridas tornavam visível a rotação do planeta. Júpiter gira depressa, fazendo uma revolução a cada 9 horas, 40 graus de longitude por hora. Podíamos ver as feridas movendo-se pela face do planeta, desaparecendo em uma borda e surgindo na outra. E as crianças também podiam vê-las.

Universo em colapso

Ferris diz que a astronomia amadora é um setor em crescimento, ganhando importância científica na medida em que novas tecnologias aumentam o alcance dos instrumentos amadores. Outro fator que beneficia o observador amador é a mudança em nossa visão do universo, causada por descobertas recentes. A visão aristotélica tradicional imaginava que o universo astronômico fosse uma esfera de paz e harmonia imutáveis.

Somente a Terra era perecível e violenta, enquanto os corpos celestes eram perfeitos e tranquilos. Essa visão foi refutada por diversas descobertas nos últimos 400 anos, a começar pelas duas estrelas explodindo, observadas por Tycho Brahe e Johannes Kepler, e as montanhas e vales da Lua descobertos por Galileu. Nos últimos 50 anos ficou claro que vivemos em um universo violento, cheio de explosões, colapsos e colisões. Hoje a Terra parece ser um recanto comparativamente calmo em um universo de violência cósmica.

O bombardeio de Júpiter em 1994 demonstrou que o nosso sistema solar não é imune a essa violência. Depois da substituição da antiga visão estática do Universo por uma nova visão dinâmica, a matéria da astronomia também se transformou. A astronomia está menos preocupada com as coisas que não mudam e mais com as coisas que mudam rapidamente. A nova ênfase para fenômenos em rápida mutação exige observação rápida e frequente - um jogo que os amadores sérios jogam muito bem, às vezes melhor que os profissionais. É um jogo que dá aos amadores e profissionais muitas oportunidades de cooperação frutífera.

Ferris nos mostra uma visão grandiosa da importância crescente dos amadores, ágeis, bem equipados e coordenados, saltando à frente dos profissionais vagarosos para abrir novas fronteiras. Alguns astrônomos profissionais concordam com essa opinião e apreciam a ajuda dos amadores. Mas a maioria dos profissionais considera banais seus esforços. Afinal, os profissionais com seus grandes instrumentos e grandes projetos estão solucionando os problemas centrais da cosmologia, enquanto os amadores estão descobrindo pequenos cometas e belos asteróides.

A opinião da maioria dos profissionais foi expressa pelo físico Ernest Rutherford, descobridor do núcleo do átomo: ''A física é a única ciência verdadeira, o resto é coleção de borboletas''. Para a maioria dos astrônomos profissionais, a estrutura maior do Universo é a verdadeira ciência, ao passo que os cometas e asteróides são detalhes que só interessam aos colecionadores de borboletas. Este é um passatempo interessante, mas não deve ser confundido com ciência séria.

O choque entre as duas visões da astronomia amadora, a de Ferris, dos amadores como pioneiros, e a de Rutherford, como colecionadores de borboletas, tem raízes profundas. Ele vem de uma antiga disputa entre duas visões da natureza da ciência. Existem dois tipos de ciência, conhecidas pelos historiadores como baconiana e cartesiana. A ciência baconiana se interessa pelos detalhes; a cartesiana, pelas idéias. Bacon disse: "Tudo depende de se manter o olhar fixo nos fatos da natureza e receber suas imagens como são. Deus não permita que possamos confundir um sonho de nossa imaginação com um padrão do mundo".

Descartes disse: "Eu mostrei quais são as leis da natureza e, sem basear meus argumentos em qualquer princípio senão o das infinitas perfeições de Deus, tentei demonstrar todas as leis sobre as quais poderíamos ter alguma dúvida e mostrar que elas são tais que, mesmo que Deus criasse vários mundos, não poderia haver nenhum em que elas não fossem observadas".

A ciência moderna deu um salto à frente no século 17 em consequência da frutífera competição entre opiniões baconianas e cartesianas. A relação entre a ciência baconiana e a ciência cartesiana é complementar. Precisamos de cientistas baconianos para explorar o universo e descobrir o que existe para ser explicado. Precisamos de cientistas cartesianos para explicar e unificar o que descobrimos.

Falando de modo geral, os astrônomos profissionais tendem a ser cartesianos, e os astrônomos amadores, baconianos. É certo e saudável que exista o choque entre suas opiniões, mas é errado qualquer dos lados tratar o outro com desprezo. As simpatias de Ferris estão do lado dos amadores, mas ele retrata os profissionais com respeito e compreensão.

Mundos desconexos

A astronomia é a ciência mais antiga e tem a história mais longa. Durante dois mil anos ela foi estudada de maneiras diferentes em dois mundos desconexos: o mundo ocidental da Babilônia, Grécia e Arábia, e o mundo oriental da China e Coréia. A astronomia antiga no Ocidente era predominantemente cartesiana, e culminou no elaborado universo teórico de Ptolomeu, com seu mecanismo de ciclos e epiciclos que determina como os corpos celestes devem se mover.

A astronomia no Oriente era baconiana, coletando e registrando observações sem uma teoria unificadora. Em ambos os mundos, a astronomia se misturava com a astrologia e era estudada principalmente por astrólogos profissionais. Depois de um início promissor, o progresso parou e a ciência estagnou durante mil anos, porque nem a ciência baconiana nem a ciência cartesiana podiam florescer isoladamente.

No Ocidente, a teoria não era limitada pelas novas observações, e no Oriente as observações não se guiavam pela teoria. Então houve o grande despertar no Ocidente, quando Bacon e Descartes juntos abriram caminho para o florescimento da ciência moderna. Os séculos 17 e 18 foram o apogeu dos amadores científicos. Durante esses dois séculos cientistas profissionais, como Isaac Newton, foram a exceção, e cavalheiros amadores, como seu rival Gottfried Leibniz, a regra.

Os amadores tinham liberdade para saltar de uma área da ciência para outra e começar novos empreendimentos sem esperar aprovação oficial. Mas, no século 19, depois de 200 anos de liderança amadora, a ciência tornou-se cada vez mais profissional. Entre os principais cientistas do século 19, profissionais como Michael Faraday e James Clerk Maxwell foram a regra, e amadores como Charles Darwin e Gregor Mendel, a exceção.

No século 21, a predominância dos profissionais se tornou ainda maior. Nenhum amador no século 20 poderia se colocar como Darwin na linha de frente com Hubble e Einstein.

A terceira fase das ciências

Se Ferris estiver certo, a astronomia agora está passando para uma nova era de exuberância juvenil, em que os amadores novamente terão uma importante participação. Parece que cada ciência passa por três fases de desenvolvimento. A primeira fase é baconiana, em que os cientistas exploram o mundo para descobrir o que existe. Nessa fase, os amadores e colecionadores de borboletas estão em ascensão.

A segunda fase é cartesiana, em que os cientistas fazem medições precisas e formulam teorias quantitativas. Nessa fase os profissionais e especialistas estão em ascensão. A terceira fase é uma mistura da baconiana com a cartesiana: nela, tanto amadores quanto profissionais são potencializados por uma série de novas ferramentas técnicas que surgem da segunda fase. Na terceira fase as ferramentas baratas e poderosas dão aos cientistas toda liberdade para explorar e explicar.

A mais importante das novas ferramentas é o computador pessoal, que hoje é universalmente acessível e dá aos amadores a capacidade de fazer ciência quantitativa. Depois do computador, a segunda ferramenta mais importante é a World Wide Web, que dá aos amadores acesso a trabalhos e discussões científicas antes que sejam publicados, permitindo que amadores do mundo todo se comuniquem e trabalhem juntos.

A astronomia, a ciência mais antiga, foi a primeira a passar pela primeira e a segunda fases e a entrar na terceira. Que ciência será a próxima? Que outra ciência está madura para uma revolução que dê à próxima geração de amadores oportunidades para fazer descobertas importantes? A física e a química ainda estão na segunda fase. É difícil imaginar um físico ou químico amador atualmente fazendo uma importante contribuição para a ciência. Antes que a física ou a química possam entrar na terceira fase, essas ciências devem ser transformadas por descobertas e ferramentas radicalmente novas.

A biologia na fronteira

A situação da biologia é menos clara. A biologia da corrente principal está sem dúvida na segunda fase, dominada por exércitos de profissionais que exploram o genoma e analisam trajetórias metabólicas. Mas existe um extenso campo da biologia distante da linha dominante, em que amadores seguem a tradição de Darwin e descobrem novas espécies de flores, criam novas variedades de cães, pombos e orquídeas e colecionam borboletas.

O escritor Vladimir Nabokov foi o mais famoso colecionador de borboletas do século 20, mas existem muitos outros não tão famosos que também descobriram novas espécies. Um jovem amigo meu, que recentemente foi como estudante para o Equador, descobriu 12 novas espécies de plantas na floresta tropical. A biologia provavelmente será a próxima ciência a entrar na terceira fase.

Novas ferramentas que poderão potencializar os biólogos amadores já estão visíveis no horizonte. As novas ferramentas serão versões mais baratas e menores das ferramentas hoje usadas pelos biólogos profissionais para fazer engenharia genética. Foram necessários 30 anos para que os dispendiosos e incômodos computadores dos anos 50 evoluíssem para os computadores pessoais baratos e convenientes dos 80.

De modo semelhante, as atuais máquinas de sequenciamento do genoma e da síntese de proteínas vão evoluir para máquinas de baixo custo que cabem até sobre uma mesa de escritório. O computador pessoal não apenas é mais barato e menor, mas também mais rápido e poderoso que o mainframe que ele substituiu.

Os sequenciadores e sintetizadores desktop do futuro serão mais velozes e poderosos que as máquinas que vão substituir - e serão controlados por programas de computador mais sofisticados.

Democratizando novas tecnologias

Quando essas ferramentas estiverem disponíveis, a demanda por elas será irresistível, assim como a demanda por computadores laptop é irresistível hoje. A engenharia genética de rosas e orquídeas, arbustos ornamentais e legumes será uma nova forma de arte, assim como uma nova ciência.

Os moradores de subúrbios abastados usarão as novas ferramentas para embelezar seus jardins, enquanto agricultores de subsistência nos países pobres as usarão para alimentar suas famílias com legumes mais produtivos e de melhor sabor. Os criadores amadores de plantas e animais, os ecologistas e os amantes da natureza poderão então fazer sérias contribuições à ciência, assim como fazem hoje os astrônomos amadores.

Antes que o uso amador da engenharia genética se generalize, diversos obstáculos políticos e jurídicos devem ser superados. Muitas pessoas se opõem fortemente à engenharia genética de qualquer tipo. Parte dessa oposição decorre de princípios religiosos ou ideológicos, mas grande parte vem de preocupações práticas. A engenharia genética sem dúvida pode ser perigosa para a saúde pública e a estabilidade ecológica.

O uso de kits de engenharia genética deve ser estritamente regulamentado para que esses perigos sejam evitados. A engenharia genética de micróbios é uma grande ferramenta para terroristas, como demonstra Richard Preston em seu recente livro ''The Demon in the Freezer'' (Random House, 2002) [o livro narra a reação do governo americano à ameaça das cartas com antrax depois do 11 de setembro e descreve as possíveis consequências da criação de um supervírus de varíola para ser usado como arma biológica].

Qualquer kit disponível ao público deve ser fisicamente incapaz de manipular micróbios. Pode ser que as autoridades políticas decidam proibir totalmente esses kits. Será triste para a biologia se os amadores forem proibidos de usar as ferramentas disponíveis aos profissionais. Mas essa é uma decisão que devemos deixar para nossos netos.

A revolução dos amadores

Quando olhamos para a sociedade em geral, fora do domínio da ciência, vemos amadores exercendo papéis essenciais em quase todos os campos da atividade humana. Músicos amadores criam a cultura em que os músicos profissionais podem florescer. Atletas, atores e ambientalistas amadores melhoram a qualidade de vida para si mesmos e para os demais. Autores amadores como Jane Austen e Samuel Pepys fazem tanto quanto os profissionais Charles Dickens e Fiódor Dostoiévski para vasculhar os cumes e as profundezas da experiência humana.

Na mais importante de todas as responsabilidades humanas, a criação de filhos e netos, os amadores fazem o principal trabalho. Em quase todos os campos da vida, os amadores têm mais liberdade para experimentar e inovar. A porcentagem de amadores numa população é uma boa medida da liberdade de uma sociedade. Ferris nos mostra como os amadores estão dando um novo sabor à astronomia moderna.

Podemos esperar que os amadores neste novo século, usando as ferramentas que a tecnologia moderna coloca em suas mãos, invadam e rejuvenesçam toda a ciência.

Freeman Dyson, físico inglês e professor emérito do Instituto para Estudos Avançados de Princeton, é considerado um dos maiores divulgadores de ciência do mundo e autor de, entre outros, "O Sol, o Genoma e a Internet", "Infinito em Todas as Direções" (ambos pela Companhia das Letras) e "Perturbando o Universo" (editora UnB).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
 

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