Prêmio Folha Categoria Reportagem 1995
Invasor ameaça antigo quilombo em Goiás


27/08/95
Editoria: BRASIL
Página: 1-16


MARIO CESAR CARVALHO
Enviado especial ao Vão de Almas

Negro lá no norte de Goiás tem seu dia de imperador. De terno e gravata, lenço branco sobre a carapinha e óculos escuros, Natalino Fernandes de Castro, 40, foi coroado no último dia 15. Reina por um dia _e aí ele pode até soltar um amigo que foi preso pela polícia "sem justiça''. Castro é kalunga, nome pelo qual são conhecidos os remanescentes de um quilombo no norte de Goiás. A coroação é uma farra: tem reza com palavras em latim, dança, bolo de fubá de arroz e muita cachaça.
Finda a festa, os 4.000 kalungas são jogados num mundo que não tem nada de encantado: suas terras estão sendo invadidas. Eles têm 2.020 km², o equivalente a uma cidade de São Paulo e meia, a 590 km ao norte de Goiânia.
"De 70% a 80% desse território foi invadido por grileiros'', estima a antropóloga Mari Baiocchi, 61, da Universidade Federal de Goiás, que estuda os kalungas desde 82.

O isolamento
Os negros chegaram à região há cerca de 250 anos. Ninguém sabe ao certo de onde vieram. Fugiam de minas de ouro de Goiás, provavelmente. Supõe-se que eram de Angola e do Congo. O termo kalunga, oriundo das línguas umbandu, kimbandu e kikongo, faladas na região central e sul da África, designa rio, vale ou mar. Os etnólogos adotam a grafia usada na África, com ``k'' em vez de "c''.
Os kalungas refugiaram-se ao longo do rio Paranã em serras de difícil acesso. A estrada de asfalto mais próxima ao Vão de Almas fica a oito horas em lombo de burro; a de terra, a três. Há pontos do antigo quilombo que só se atingem após três dias de cavalo. Não há estradas ou luz elétrica; só picadas. Doentes são carregados em rede em viagens que duram um dia.
Estavam tão isolados que cultivam tradições africanas e européias, como a coroação do imperador, os tambores feitos de troncos e o latim das rezas.
Furnas nem os notou quando começou a planejar uma hidrelétrica no rio Paranã em 1987, que inundaria 80% do território kalunga. Teve de alterar os planos, que estão arquivados. "Os kalungas construíram uma cultura própria por causa do isolamento, que precisa ser preservada'', diz Baiocchi.
"Com os kalungas podemos entender como seria o pensamento do negro brasileiro isolado do pensamento europeu'', afirma Wilson Fernandes de Oliveira, 54, professor da Universidade Federal de Mato Grosso, que prepara uma tese sobre os kalungas na USP.
Nessa cultura, as casas são feitas de tijolos moldados a mão e cobertas de piaçava, uma das palmeiras da região. Como nas nações africanas, os mais velhos têm poder sobre os mais jovens e não existe a noção de adultério.
Há dez anos, fiavam algodão para fazer tecido, faziam corda de viola com rabo de cavalo e andavam quase nus. Plantam arroz, mandioca, milho e criam gado.
Quase não usam dinheiro. O sal com que cozinham e o querosene que usam nas lamparinas são trocados nas cidades vizinhas por farinha de mandioca. Suas fazendas estão espalhadas em cerca de cem núcleos, formados normalmente por membros de uma família.
Os batuques que fazem em tambor de madeira com couro de veado parecem saídos da África. Não há melodia; só ritmo e improviso. Os que vão para as cidades vizinhas _Teresina de Goiás, Cavalcante e Monte Alegre_ descobriram o radiogravador e ouvem do rap de Racionais MC ao sertanejo de Zezé di Camargo e Luciano.
Só em 82, com a chegada de pesquisadores à área, os kalungas passaram a existir para o governo goiano. Três anos depois, para evitar a extinção do grupo, foi aprovada uma lei que doava a terras da serra aos kalungas.
Foi o primeiro remanescente de quilombo a obter tal conquista, prevista na Constituição de 88 e que até hoje não saiu do papel. Em 91, o território foi tombado como sítio histórico. Segundo a lei aprovada pela Assembléia Legislativa de Goiás, a área deve ser preservada pela importância histórica e só pode ser habitada por descendentes dos kalungas.

A invasão
Tudo isso não garante nada. Os kalungas saíram de um mundo comunitário e caíram na ante-sala da barbárie. A região abriga garimpeiros de ouro, mineradoras de cassiterita e invasores.
Os métodos para tirar os kalungas da terra são similares aos do velho oeste. ``Os grileiros soltam búfalos sobre as plantações de arroz, queimam nossas casas e ameaçam matar a gente'', conta Francisco Bispo dos Santos, 63, dono de 75 alqueires na região. "Só saio daqui para o cemitério.''
As reclamações contra invasores se repetem como ladainha. "Eu tinha umas 300 reses e hoje tenho quatro vacas de leite'', diz Regino Dias da Silva, 60. Segundo Silva, cerca de 2.000 alqueires dele e dos seus 14 irmãos foram tomados por invasores.
A invasão é facilitada pela lerdeza do governo. Os 2.020 km² foram doados aos kalungas, mas o governo só deu o título da terra para um terço dessa área. O resultado é que cerca de 600 pessoas expulsas de suas fazendas vivem de favores em terras de outros kalungas.
Polícia, ali, praticamente não existe. "Fui dar queixa de uma invasão e não aceitaram'', conta Agripino Pereira das Virgens, 57. Há dois meses a Procuradoria-Geral da República em Goiás começou a investigar as invasões (leia texto abaixo).
Como nas nações africanas, a terra tem um sentido sagrado para os kalungas, segundo Baiocchi. Só 30% da área é cultivável _o resto é pedra e serra. Mas eles não querem sair de lá.
A cidade é descrita com tintas do inferno por Procópia dos Santos Rosa, 62, líder dos kalungas: "A gente não vai comer lixo na cidade. Em Brasília tem gente comendo lixo debaixo da ponte. Vi com meus olhos _não estou mentindo_ uma velha comendo jornal. Se o governo quer tirar a gente daqui, é melhor mandar matar''.


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