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Brasília Online

26/08/2007

Brasil merece "comissão da verdade" sobre 64

KENNEDY ALENCAR
Colunista da Folha Online

A regra de que a História sempre é escrita pelos vitoriosos foi quebrada pelo livro "Direito à Memória e à Verdade", obra que relata os 11 anos de trabalho da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Pela primeira vez, um documento oficial do governo federal conta a história dos derrotados pela ditadura militar de 1964 --como mostrou reportagem na versão impressa da Folha de sábado (25/08) (disponível para assinantes do jornal e do UOL).

O Estado brasileiro assume a versão de que a repressão política decapitou, esquartejou, estuprou, torturou e ocultou cadáveres, entre outros atos cruéis, de opositores da ditadura que já estavam presos e que não tinham como reagir. "A maioria das mortes se deu na prisão, sob intensas torturas", afirma o livro, que é produzido pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.

A obra será divulgada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na quarta-feira, em cerimônia no Palácio do Planalto. O livro sugere que militares da ativa e da reserva sejam interrogados sobre o paradeiro dos restos mortais de opositores da ditadura. Lula ainda não decidiu se criará essa espécie de "comissão da verdade". Em outros países da América Latina, numa onda de revisão histórica, foram criadas "comissões da verdade" a respeito de períodos ditatoriais.

Em 1995, o então presidente Fernando Henrique Cardoso teve a coragem de editar uma lei que fez o Estado brasileiro assumir a responsabilidade pela morte de "causas não naturais" dos opositores da ditadura. Foi um grande avanço. Lula, que tinha feito muito menos nessa área do que o antecessor, dá agora um passo importante ao bancar um livro que diz com todas as letras como aconteceram essas mortes de "causas não naturais".

O livro-relatório pede mais investigações para tentar localizar os restos mortais dos desaparecidos. Não fala, porém, em punição, o que deve desagradar às famílias dos mortos e desaparecidos. A intenção da Secretaria dos Direitos Humanos, comandada pelo ex-preso político Paulo Vannuchi, é evitar uma oportunidade de revanche. Os objetivos são restabelecer a verdade histórica sobre aquele período e dar às famílias o direito milenar de sepultar seus entes queridos.

A geração que combateu a ditadura militar cometeu equívocos. O livro reconhece que atos das organizações clandestinas de esquerda fizeram vítimas entre militares e agentes civis do regime. Mas, se havia um lado certo naqueles tempos, era o lado de homens e mulheres (a maioria jovens) que tiveram a ousadia de enfrentar o regime dos generais-presidentes.

O Brasil tem o direito de conhecer a verdade a respeito do seu passado, por mais doloroso e feio que ele tenha sido. A decisão está nas mãos de Lula. O presidente analisa a sugestão para criar uma instância que reconstitua os arquivos da ditadura. Lula tem o dever histórico de criar essa espécie de "comissão da verdade". Se hesitar ou se recuar, cometerá um erro que manchará a sua biografia.

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A história dos derrotados

O livro traz um resumo sobre 475 casos. Desses, 339 foram apreciados pela comissão de mortos e desaparecidos. A comissão deferiu 221 pedidos de indenização. Esses 221 casos se somaram a outros 136 já reconhecidos como mortos ou desaparecidos pela lei 9.140 de 1995, a que foi editada no governo FHC. Um dos 136 casos foi excluído, pois se descobriu que a pessoa morrera de "causas naturais".

Ao final, o governo decidiu pagar 356 indenizações, mas uma delas não foi efetivada porque familiares não apareceram. As indenizações variaram de R$ 100 mil a R$ 152 mil.

Editado com tiragem de 5.000 exemplares e 500 páginas, o documento afirma que familiares dos mortos e desaparecidos "passaram a ser submetidos a verdadeiras operações de contra-informação e, muitas vezes, foram alvo de chantagem para obtenção de informações que, em nenhum dos casos, se comprovaram verdadeiras".

O documento da comissão traz as circunstâncias da mortes e desaparecimentos baseando-se em arquivos da Justiça Militar, do Ministério Público e do próprio governo (inclusive das Forças Armadas), além de depoimentos que tomou, de entrevistas de oficiais e de ex-agentes à imprensa e de livros sobre aquele período. Ou seja: o livro torna narrativa oficial do Estado um conjunto de depoimentos e informações, muitas delas informais.

De acordo com o livro, "a violência repressiva não poupou as organizações clandestinas que não tinham aderido à luta armada e nem mesmo religiosos que se opuseram ao regime sem filiação a qualquer organização". A obra mostra que a cúpula da ditadura tinha conhecimento da tortura e das mortes.

Cita, por exemplo, passagem do livro do jornalista Elio Gaspari "A Ditadura Derrotada" que diz que o presidente Ernesto Geisel "sabia dessa política". Gaspari relata diálogo no qual Geisel, general que presidiu o país de 15 de março de 1974 a 14 de março de 1979, recomenda a um auxiliar "agir com muita inteligência, para não ficar vestígio nessa coisa [mortes e desaparecimentos]".

A comissão diz que o termo "desaparecido" é usado para definir a condição daquelas pessoas que, apesar de terem sido mortas ou seqüestradas, torturadas e mortas pelos órgãos de segurança, não tiveram suas prisões e mortes assumidas pelas autoridades do Estado". E o termo "morto" é destinado aos casos em que o Estado já reconheceu publicamente a morte. De todos os desaparecidos brasileiros, apenas três corpos foram encontrados e sepultados pelos familiares.

A comissão, formada por sete integrantes, faz parte da estrutura administrativa da Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Possui três representantes do Executivo, incluindo o das Forças Armadas, um da sociedade civil, um dos familiares, um do Ministério Público Federal e um da Câmara dos Deputados. Seus integrantes dizem que não se trata apenas de um documento do governo, mas de uma narrativa do Estado brasileiro, pois há representantes de outras instituições e da sociedade.

Kennedy Alencar, 42, colunista da Folha Online e repórter especial da Folha em Brasília. Escreve para Pensata às sextas e para a coluna Brasília Online, sobre bastidores do poder, aos domingos. É comentarista do telejornal "RedeTVNews", de segunda a sábado às 21h10, e apresentador do programa de entrevistas "É Notícia", aos domingos à meia-noite.

E-mail: kennedy.alencar@grupofolha.com.br

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