Colunas

Diário, Depressão e Fama

20/03/2006

Corno manso, 64, aprendiz de feiticeiro

"Pelo jeito, você gosta mais de escrever sobre mim do que sobre o Luxemburgo! Sua crônica da semana passada 'mexeu' comigo, com meus brios e com meu desejo de ser entendido melhor. Ali aparece apenas o ciúme, não o que fiz dele. O limão, mas não a limonada, como diria o ilustre articulista.

Durante 54 anos de minha vida, 64 menos os primeiros 10, me debati com a expressão "corno manso". Tenho a impressão que as atuais gerações masculinas lidarão melhor do que a minha com o medo de ser traído. A sua deve sofrer do mesmo mal. Além de velhos, somos do interior! Cresci ouvindo críticas e fofocas humilhantes sobre os cornos mansos da cidade e, assim, desenvolvi o sentimento e a certeza de que ser corno era pior do que ser adúltero e que ser corno manso era pior do que ser corno bravo.

Demorei 54 anos para criticar a certeza e principalmente o sentimento. Agora te conto o que aprendi. A primeira parte de uma crítica é o questionamento, a capacidade de fazer perguntas: se o cara foi traído, importa se ele é manso ou bravo? E importa a quem? Se matar o rival ou espancar a mulher, ele estará melhor perante a sociedade? (entre parênteses, Jorge Amado já lidava bem com essas questões em "Gabriela, Cravo e Canela". O turco Nacib perdoa Gabriela, não mata o rival e se reconcilia com ela apesar do muito sofrimento, enquanto um coronel velho mata a amante 'adúltera' -- nem sua mulher era).

Demorei meio século para descobrir que prefiro ser corno manso, ou seja, se tiver que ser traído, algo de que ninguém que conheço escapou, prefiro a mansidão à brabeza. Se uma mulher quiser ou precisar trair, não vai ser a braveza do marido ou sua mansidão que impedirão. Talvez um manso até seja menos traído por ser, quem sabe, mais amoroso.

Eu tinha um pacto com minha mulher. A gente só revelaria as traições que se tornassem importantes. Ou seja, se sonhássemos, dormindo ou acordados, com uma parceria sexual ou amorosa fora do casamento, ou se a desejássemos, ou se beijássemos alguém ou mesmo se transássemos, e se isso não tivesse nenhuma conseqüência dentro do casamento, estava combinado que não revelaríamos ao outro. Só revelaríamos se o outro percebesse e passasse a sofrer de uma suspeita infernal. A razão para revelar era impedir que o cônjuge sofresse a dor dos sinais contraditórios, ou seja, o sofrimento de perceber e ter sua percepção negada, quando o traído, além de sofrer com uma suspeita, sofre também com outra, a de que está ficando louco, imaginando coisas.

Pois ocorreu de eu me ver nesta situação: minha mulher me traiu, tenho certeza que sim, como lhe disse no café na padaria, pedi a ela que me contasse, argumentei que não suportaria viver na dúvida, e ela se negou terminantemente a confessar.

Há males que vêm para bem. Ela substituiu a regra anterior por esta: só conto se quiser, se puder, tenho direito aos meus segredos, isso é mais importante do que preservar a percepção do outro. Ela não o fez explicitamente, talvez nem pudesse, mas estabeleceu um novo patamar e nos livrou do mau hábito dos juramentos bíblicos, "quero ver meus filhos cegos, mortos e esturricados como nunca te traí". Ela nos recolocou na realidade, a verdadeira do ser humano, a de que somos e seremos indivíduos para sempre, estejamos apaixonados, amando-nos ou odiando-nos. Talvez a última trincheira da individualidade no casamento seja a possibilidade de manter os próprios segredos, o cônjuge saber e respeitar o fato de que há segredos na alma e na mente do outro. Ela elevou nosso casamento a um patamar superior, mais desenvolvido, de pessoas que não temem as fantasias e os atos do cônjuge. Ao me fazer passar por isso, e para isso ela teve que me trair e me querer de volta, ensinou-me que posso suportar e perdoar a traição. Mais, que posso sofrer, mas que respeitarei por princípio a liberdade dela de ter sua vida íntima inconfessa. E não apenas por principio, devo confessar, também por interesse, pois já que consigo aceitar, diferentemente de outros machos de minha geração, que não pode haver dois pesos e duas medidas no casamento, se ela pode ter sua vida íntima, eu também posso! Agora, se eu a trair, não preciso confessar! Aprendiz de feiticeiro também faz seus truques.

Já rendi duas colunas a você. Você me deve. Peço duas coisas em troca: publique minha carta com o mínimo de edições e mostre aos leitores a letra de sua canção "Minha mulher", acho que o nome é esse, aquela que você fez com um aluno, que cantou para mim quando nos conhecemos. Só me lembro de dois versos: causa de minha ternura, casa de minha família. Ah, faltou dizer uma coisa. Depois de 54 anos pensando no assunto cheguei à conclusão de que sexo é o que menos importa num casamento. Sugiro que use 64 para me identificar naqueles parênteses que você põe ao final das mensagens dos leitores." (Meia-quatro, famoso).

"Ótima coluna. Incrível como os homens não aprendem e seguem sofrendo até o fim da vida. Veio muito a calhar comigo e com o atual momento. Garanto que muitos também estão passando pela mesma coisa." (Túlio, pelo jeito, de uma geração mais nova)

"Muito boa a sua coluna de hoje! Falar de corno sempre dá pano para manga, né mesmo? Mas... não curti nada essa sua (que não é propriamente sua -- é do Saramago) forma de passar a fala para o outro num diálogo. A gente se perde muito. Acaba dando a maior canseira. Uma depressão. Por favor, volte a usar as marcações tradicionais! Os leitores agradecem." (Silvana, como todos aqui, sobre a coluna anterior)

"Manhã de sábado (domingo é dia de folia com as crianças): sempre que possível capuccino e pão de queijo na cafeteria da esquina! Sem a Folha, mas com muito assunto e bom papo com o marido! Nada melhor! Mas sou obrigada a discordar da ponderação dessa semana: não aceito que a traição seja inerente à condição humana! Acho que é falta de caráter, de honestidade para assumir que o amor já era, ou que a atração pelo vizinho está sendo forte o suficiente para justificar o fim da relação, ou que o outro cara escreve melhor letras de músicas... . Traição se engole... jamais se perdoa! Seja de amigo, parceiro ou amor! Eu, particularmente, nem perdôo nem engulo, se acontecer... sei lá, acho que esqueço a "finura" e "parto para a ignorância". Ou ... viro as costas e não olho para trás! Também já estou naquela fase em que os amigos são poucos, escolhidos e prá valer, e o amor já dura 20 anos, bem amados! Ou seja, não há espaço para traição, em que nível for. Voltando a você, vai me dizer que quando escutar a tal da música, cuja letra deveria ter sido sua, não vai lembrar da pisada na bola? Vai sim, principalmente se tocar na rádio e fizer sucesso! Ou melhor, provavelmente lá no fundo vai torcer para que não faça sucesso, por mais amigo que seu parceiro seja!" (S, uma mulher deprimida)

"Quer mulher, ser minha / Concubina e minha rainha / Causa de minha ternura / da luxúria pura e da paz / Casa de minha família / Ser humana e ser divina?" ("Minha", Pedro Regensteiner e eu).
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

Leia as colunas anteriores

FolhaShop

Digite produto
ou marca