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Diário, Depressão e Fama

03/07/2006

Uma vida em busca de afinação

Meu pai, filho de árabes, professor de violão, dizia que a música era a rainha das artes e o violão, descendente do árabe alaúde, o rei dos instrumentos. Alaúde significa deus da madeira (Alá, Deus; ude, madeira).

Meu primeiro emprego, aos 16 anos, foi como assistente de professor de violão, do velho. Aos 18, na ECA / USP / Departamento de Música, os alunos violonistas, vários, como bons brasileiros, éramos constrangidos a ouvir constantemente de nosso diretor, que lançava estas sentenças com um sorrisinho indescritivelmente irônico e sórdido no rosto, que o violão era um instrumento primitivo: 'nem é instrumento de orquestra...', ou 'que grande compositor escreveu para violão?'.

Claro, ele se referia aos compositores eruditos (e, de roldão, desconsiderava completamente Villa-Lobos, que escreveu obra extensa para o instrumento). Nós nos calávamos, jovens e carentes de bons argumentos. Que falta nos fez o aforismo de Lévi-Strauss, em que afirma com felicidade única que a verdadeira arte, a que nos toca profundamente, pode ser encontrada tanto numa simples canção popular quanto em grandes obras orquestrais, embora várias destas mal consigam esconder sua mediocridade por trás da grande massa sonora.

De posse desse argumento, poderíamos rebater com João Gilberto (que criou um dos mais famosos estilos musicais ao violão, embora não fosse exatamente um compositor), Lennon e McCartney (que gostavam de compor, sentados um em frente ao outro, ambos com seus violões), o ministro Gil, Baden Powell, para ficar apenas em alguns brasileiros e no maior grupo pop da história. E nem precisaríamos recorrer à guitarra elétrica, esta descendente do violão, pois aí seria covardia: Jimi Hendrix.

O violão, se descende de um antepassado milenar, também não se pode dizer moderno. É realmente primitivo 'tecnologicamente': cordas esticadas num pedaço oco de madeira. Como são os nobres instrumentos da família do violino, que alcançaram o apogeu de sua construção na passagem dos séculos dezessete e dezoito. Um Stradivarius, construído então, custa hoje entre 200 a 400 mil dólares. Tal como o diretor do departamento de música, meu pai gostava de comparar o violão aos demais instrumentos, porém com um resultado inteiramente oposto: dizia que o violão era o instrumento mais emocionante, pois que se toca encostado ao peito, perto do coração. Era um romântico, um mitômano, afirmava que quando Garoto tocava para uma flor, esta se virava para o violão.

Outro aspecto tecnológico primitivo do violão, que os modernos sintetizadores e teclados resolveram definitivamente, é a afinação. Num concerto de música antiga, apresentado por um grupo europeu no Masp, nos meus tempos de ECA, o alaudista comentava, sobre seu instrumento, que passaria 2/3 da vida afinando-o e 1/3 tocando-o desafinado. Nesse aspecto, seu descendente continua muito parecido. Graças à tecnologia digital, hoje há afinadores eletrônicos que se prendem ao violão e indicam imediatamente quando uma corda está desafinada. A proporção deve ter caído para meio a meio.

A partir de um determinado momento histórico, a tecnologia passou a não representar problemas para o artista. A arte não depende do certo (como a matemática) nem do evidente (como a ciência). Não existe erro em arte. Existe o belo, o feio, o profundo, o raso, o bem e o mal feito, o humano, o universal, o particular, o estranho. O artista pode me tocar sem instrumento algum, apenas com sua voz, ou seu gesto, ou com um lápis e um pedaço de papel, ou com o aparato das superproduções americanas. Talvez eu te toque via rede. Talvez 'O xote das meninas', 'Maricotinha' e 'A canção do astronauta perdido' sobrevivam para sempre ao lado da 'Quinta sinfonia', da 'Arte da fuga' e da 'Sinfonia Júpiter'.

Os instrumentos que alcançaram seu apogeu em eras não eletrônicas precisarão eternamente de cuidados especiais para se manter conservados e afinados. Recentemente, um ótimo quinteto de cordas, Quintal Brasileiro, gravou seu primeiro CD, para o qual encomendou uma peça minha. Quando o CD sair, dou o link da peça aqui na coluna (se eles permitirem). Participei de ensaios e da gravação, para ajudá-los e ajudar-me a compreender o que tinha escrito. O cuidado com a afinação, sempre reajustada entre os cinco músicos, entre uma passada e outra da peça, era constante e me remetia a uma época em que o tempo talvez fosse sentido diferentemente, quando talvez os minutos durassem mais. Como era bom perder tempo ali com estas ações: afinar, ensaiar, aprimorar, sofisticar, simplificar, combinar, equilibrar.

Se conservação pode ser vista como manutenção, afinação pode ser vista como sofisticação, ou a busca por um equilíbrio perfeito. Não consigo evitar a analogia com os seres humanos, também pré-tecnológicos, e entre eles, com os que mais precisam manter-se e afinar-se (com os outros): os melancólicos, os neuróticos, os deprimidos, os perturbados. E que, talvez por serem assim, muitas vezes acabam por sofisticar-se.

Lévi-Strauss disse também que todas as artes almejam o status da música, a mais abstrata das artes devido à natureza de seu material, o som sem significado concreto e traduzível em palavras. A arte que fala diretamente aos sentimentos e às emoções. A rainha das artes.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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