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01/01/2001 - 17h57

Leia a íntegra do discurso do ex-prefeito Celso Pitta

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  • Pitta diz que deixa R$ 70 mi em caixa
  • Manifestantes chamam Pitta de "ladrão"
  • Volto às ruas com minha face mestiça, diz Pitta
  • Pitta se despede e passa cargo a Marta
  • Pitta deixa Palácio das Indústrias sob vaias

    da Folha Online

    Veja abaixo a íntegra do discurso do ex-prefeito Celso Pitta, proferido hoje à tarde no Palácio das Indústrias durante a cerimônia de trasmissão do cargo à prefeita Marta Suplicy:

    "Senhora prefeita Marta Suplicy, ao entregar-lhe o governo de uma das maiores cidades do mundo e aquele com a mais importante situação histórica e econômica do hemisfério Sul, deve dizer, honradamente à vossa excelência, ao povo de São Paulo e aos brasileiros que partilho desta festa de democracia com o sentimento de dever cumprido.

    Passo-lhe, senhora, a administração municipal melhor do que a recebi. Deixo uma disponibilidade de caixa de R$ 70 milhões totalmente contabilizados.

    Deixo o certo recebimento de R$ 506 milhões, relativos a um sequestro de receita do Estado por conta do não-pagamento de precatórios devidos à Prefeitura.

    Deixo a receber, ainda, nos primeiros dias de janeiro, um desembolso de R$ 26 milhões do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) relativo ao projeto Procasi (canalização de córregos), que só não foi feito antes porque o BID se encontra em recesso operacional até o dia 31 de dezembro.

    Essa cidade que é, com sua população e sua economia, maior do que muitos países do mundo, reclama de seus governantes, mais do que competência e rigor, muito, muito amor.

    Esse sentimento, que se transforma facilmente em paixão, para resolver os prementes problemas dos moradores, concretiza-se nas atitudes e nas obras que acumulamos nesses quatros desafiadores anos.

    Nesse período, a administração municipal não gravou com novas dívidas o futuro da população. As finanças da cidade estão livres de desequilíbrios estruturais, graças às delicadas negociações, produto não apenas de técnica, mas também de criatividade para o refinanciamento da dívida.

    Nesse acordo, constam recursos para investimentos da ordem de R$ 1 bilhão, sendo R$ 750 milhões junto ao BNDES, para o importantíssimo setor do transporte público, e aval de US$ 100 milhões junto ao BID para o programa de recuperação do centro da cidade.

    Serei breve senhora, mas suplico dos presentes a paciência para ouvir o que fizemos em dois setores fundamentais para o presente e o futuro da cidade: educação e moradia. Viabilizamos junto ao Banco Mundial e ao BID programas de habitação como Cingapura, Guarapiranga e o Lote Legal.

    Os programas de habitação são prioritários na cidade, que, por ser um magneto para brasileiros e latino-americanos, continua atraindo as esperanças e o justo desejo de prosperidade das criaturas humanas de todos os quadrantes do continente.

    Na educação, o nosso amor pela cidade se expressou na construção de 138 novas escolas, já entregues, e mais 414 novas salas de aula, um recorde. Mais de 4.000 novos professores foram contratados e milhares de outros foram reciclados profissionalmente.

    Apesar de tudo, São Paulo deve contar consigo mesma. Na saúde, o povo desta cidade teve sonegados os seus direitos pelo governo federal, centenas de milhões de reais não foram repassados à saúde municipal. Mesmo assim, o atendimento duplicou, sem perdas de qualidade, graças aos controles que impusemos com auxílio da Fundação Getúlio Vargas.

    Para evitar tragédias coletivas, empenhamo-nos em um vigoroso programa de combate às enchentes, com a realização de uma solução que honra a engenharia paulista, que é a dos piscinões. Mais uma vez a cidade fica à espera que o governo estadual assuma suas responsabilidades no rebaixamento da calha do rio Tietê, no território municipal.

    Finalmente, senhora, o sentimento fez-me seguir minha consciência e, com todos os riscos, romper com as estruturas que, em outras épocas, dominaram a administração municipal.

    Todos aqui são testemunhas das dificuldades que foram interpostas ao nosso trabalho. Inclusive, com inédito e municipal golpe de Estado. Foram quatro anos desafiadores, que mostraram até que ponto pode ir a resistência de um homem submetido a todas as provações.

    Não é hora de se apontar ou reclamar de injustiças cometidas contra mim ou meu governo, pois essa é uma situação inerente ao exercício do cargo público de prefeito da maior cidade do país.

    Passados esses meses e anos, senhora, o juízo da história, que tem o rigor da permanência, mas também o desapaixonado exame dos fatos e das circunstâncias, me fará justiça, absolvendo-me de todas as acusações caluniosas e desfazendo todas as infâmias que me foram dirigidas.

    Deixo a administração do município de São Paulo com outras dimensões humanas. Saio do governo engrandecido pela constatação de que, nem por um momento, abandonei minha batalha.

    Aprendi, com o povo, com quem convivi em suas dificuldades e esperanças, que o sofrimento liberta a nossa alma dos lastros pequenos, e nos confere nova confiança em Deus e nos homens e mulheres do povo, a cuja nação pertenço.

    Volto às ruas dessa imensa cidade de São Paulo e ao convívio de nossa gente com minha face mestiça, curtida de sofrimento, mas também de alegria, talhada em gerações sucessivas de trabalhadores, vindos de todos os lugares do mundo, para o encontro da terra nova e prometedora.

    Aprendi também, senhora Marta Suplicy, minhas senhoras e meus senhores, que a vida é mais efêmera que imaginamos, e que só podemos aproveitá-la ao aliviá-la das cargas de ódio, do ressentimento e da inveja.

    Saberá a senhora, em sua primeira experiência executiva, que o nosso poder é relativo, que estamos sempre sujeitos aos que estão próximos e, muitas vezes, sujeitos aos nossos próprios sentimentos de afeto, amizade e gratidão.

    Sei que a senhora vem para o governo de São Paulo com suas virtudes, sua inteligência, sua disposição de servir ao nosso povo e sua independência política.

    Creio que a experiência adquirida na administração de São Paulo e na lida política cotidiana me autoriza a finalizar dizendo algo sobre a atualidade nacional.

    Começamos hoje um novo milênio, e esta data nos incita a pensar em nossa cidade e em nosso país com severa autocrítica. É vã a tentativa de ocultar a gravidade dos problemas sociais que se acumulam no século, sem que houvesse a corajosa reposta das elites dirigentes.

    As grandes cidades deixaram de ser o abrigo da vida e da oportunidade de realização humana para se tornarem depósitos da miséria e do medo.

    Nela se distinguem três humanidades: a dos que vivem de rendas, mais legítimas ou menos legítimas; a dos que trabalham como administradores de seus negócios ou como empregados; e as que vivem na província da violência.

    Na situação de miséria, todos são vítimas, tanto os pobres que sofrem a violência quanto os pobres que a praticam na busca desesperada da sobrevivência.

    Todas essas três esferas da vida urbana se encontram acossadas pelo medo. Não precisamos sair de casa: a morte nos vem visitar na arma que vacila em mãos adolescentes, e os que passaram pela experiência brutal dos assaltos e sequestros sabem que, nos olhos dos criminosos, o ódio convive com o pálido brilho do próprio pavor.

    Creio, senhora, que não há mais tempo para que o verdadeiro amor se expresse em redobrada luta ainda pela divisão mais justa da renda.

    O discurso da divisão mais justa da renda não pode continuar sendo apenas retórica vazia. Estou convencido de que os municípios devem agir com urgência, afim de impedir que a sociedade nacional se dissolva no medo.

    Somos obrigados a admitir que o Estado é o principal instrumento da violência institucional que favorece a minoria dos privilegiados contra a densa maioria do povo brasileiro, e provoca o esgarçamento do tecido social na guerra interna, que faz dos pobres as maiores e numerosas vítimas.

    Só os atos corajosos da política poderão tornar menos assustadora a convivência urbana. E é para garantir a segurança, sobre os fundamentos da justiça, que se constituem os Estados e se formam os governos. Sendo espaço privilegiado da política, os municípios devem organizar-se na existência de uma ordem justa, necessária à construção democrática da paz.

    Desejo-lhe, com toda sinceridade, que a senhora seja feliz na direção da cidade de São Paulo, e faça menos sofredora a nossa gente. A felicidade dos governantes está no cumprimento do dever, no respeito à própria consciência e na fidelidade àqueles que não contam com outra proteção que não seja a do poder público.

    Agradeço ao povo de São Paulo pelos votos que me elegeram seus governantes. Agradeço a tantos quantos me ajudaram na administração do município, e a todos que me foram solidários nesse trabalho difícil, mas decisivo, da vida.

    Tenho, para comigo mesmo e para com todos, principalmente os mais humildes, o compromisso de retorno à vida comum, mas com amor à São Paulo, fortalecido para cumpriu meus deveres de cidadão. Muito obrigado."
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