Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
11/01/2003 - 07h26

Artigo: A tutela da dignidade da pessoa humana no casamento

REGINA BEATRIZ TAVARES DA SILVA
especial para a Folha Online

1) A dignidade da pessoa humana como princípio fundamental de direito constitucional e de direito de família
Verdadeira cláusula geral de proteção integral à pessoa, a dignidade é fundamento da República Federativa do Brasil, na conformidade do art. 1º, inciso III, da Constituição Federal. Como valor supremo de nosso ordenamento, deve informar todas as relações jurídicas e está sob seu comando a legislação infraconstitucional (vide Gustavo Tepedino, "A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil - Constitucional Brasileiro", in Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, págs. 47 e 48).

Na família, a tutela da dignidade da pessoa humana, em todo o alcance desta expressão, deve ser assegurada tanto no curso das relações familiares como diante de seu rompimento, cabendo ao direito oferecer instrumentos para impedir a violação a este valor maior.

A Constituição da República contém princípios de extrema importância na preservação da dignidade dos membros de uma família, cuja aplicação na regulamentação do casamento, segundo o livro do direito de família do novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002), será analisada neste artigo.

2) O princípio constitucional da igualdade entre os cônjuges no novo Código Civil
A consagração da igualdade entre os cônjuges é indispensável para que se garanta o cumprimento do princípio fundamental da preservação da dignidade da pessoa humana.

Embora nossas Constituições sempre tenham reconhecido o princípio de que a lei deve ser igual para todos (a Constituição de 1824, art. 179, XIII, estabelecia que "a lei será igual para todos, quer proteja e quer castigue..."; a Constituição de 1891, art. 72, §2º, também dispôs que "todos são iguais perante a lei ..."; a Constituição de 1934, art. 113, §1º, estatuiu que "não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de sexo ..."; as Constituições de 1937 e 1946, arts. 122, §1º e 141, §1º, respectivamente, dispuseram que "todos são iguais perante a lei ..."; a Constituição de 1967, art. 150, §1º, ditou que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo...", princípio que foi confirmado pela Emenda nº 01, de 1969, art. 153, §1º), a legislação ordinária, por longos anos, estabeleceu regras marcadas pela desigualdade entre os cônjuges (vide Luiz Edson Fachin, "Elementos Críticos do Direito de Família: Curso de Direito Civil", Rio de Janeiro: Renovar, 1999, pág. 15).

A lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962, chamada "Estatuto da Mulher Casada", iniciou o movimento legislativo de equiparação entre o homem e a mulher no casamento, aliviando as desigualdades, sem, no entanto, tê-las suprimido completamente. Ao marido continuou a caber a chefia da sociedade conjugal, embora devesse exercê-la com a colaboração da mulher (art. 233, caput, do Código Civil de 1916), e, conseqüentemente, permaneceram na legislação ordinária os poderes do marido na representação da família, na administração de bens, na fixação do domicílio conjugal e seu dever de manter a família (art. 233, incisos I a IV, do Código Civil de 1916). A mulher adquiriu a titularidade do pátrio poder, que antes era exclusivamente do marido, mas seu exercício continuou a caber ao pai, sendo a mãe apenas colaboradora neste mister (art. 380, caput e parágrafo único, do Código Civil de 1916).

Verifica-se, assim, a relevância da Constituição de 1988 que, além dos princípios gerais de que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza ..." e que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações...", estatuídos no art. 5º, caput e inciso I, estabeleceu, expressamente, no art. 226, §5º, que "os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher".

No entanto, passados vários anos da promulgação da Constituição da República, as disparidades ainda constavam da legislação ordinária, sem as alterações necessárias, criando perplexidades e a necessidade de interpretações constantes sobre a auto-aplicabilidade do princípio constitucional em tela (vide Regina Beatriz Tavares da Silva Papa dos Santos, "Reparação Civil na Separação e no Divórcio", São Paulo: Saraiva, 1999, págs. 64 a 70).

O novo Código Civil está adequado ao princípio constitucional da absoluta igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges, com a conseqüente preservação da dignidade das pessoas casadas, consoante prevê seu art. 1.511: "O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges" (art. 1.511).

Também em adequação àquele princípio, consta do novo Código Civil: "Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família" (art. 1.565), "a direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos" (art. 1.567) e "o domicílio do casal será escolhido por ambos os cônjuges, mas um e outro podem ausentar-se do domicílio conjugal, para atender a encargos públicos, ao exercício de sua profissão, ou a interesses particulares relevantes" (art. 1.569).

Ainda em acatamento ao princípio constitucional da plena igualdade, o novo Código Civil estabelece a mesma idade núbil para homens e mulheres (art. 1.517), faculta não só à mulher, mas também ao homem, no casamento, a adoção do sobrenome do nubente (art. 1.565, §1º) e suprime a vedação ao reconhecimento da maternidade quando tenha por fim atribuir à mulher casada filho havido fora do casamento.

Da legislação anterior ao novo Código Civil sobre a dissolução da sociedade e do vínculo conjugal consta o vetusto regime da prevalência feminina na fixação da guarda dos filhos (Lei nº 6.515/77, art. 10, §1º). Este regime baseia-se em costumes ultrapassados, pelos quais a mulher, que, via de regra, era senhora do lar e não exercia profissão, dedicava-se, com exclusividade, à família, razão pela qual era tida como a melhor indicada para cuidar dos filhos. Atualmente, grande parte das mulheres trabalha fora do lar, alteraram-se os costumes, ambos os cônjuges exercem profissão e dividem as tarefas e os cuidados para com os filhos, de modo que devem ser tidos, a princípio, em iguais condições de guardá-los, cabendo ao juiz, no caso concreto, avaliar qual deles está mais habilitado ao exercício da guarda, sem qualquer prevalência feminina.

Pai e mãe devem ser tratados pela lei em absoluta igualdade de condições, sob pena de grave violação à Constituição da República, que estabelece a isonomia entre homens e mulheres (art. 5º, inciso I) e entre cônjuges (art. 226, § 5º).

Além disto, as citadas normas sobre a fixação da guarda de filhos não lhes oferecem a devida proteção, violando o art. 227 da Constituição da República, que impõe à família, à sociedade e ao Estado a tutela dos direitos das crianças e dos adolescentes.

Consta da legislação referida a perda da guarda pela culpa na separação judicial (Lei nº 6.515/77, art. 10). A culpa na separação judicial não deve ser razão determinante da perda da guarda, que deve ser estabelecida sob o princípio da prevalência dos interesses dos menores, que podem não ser preservados pelo cônjuge inocente.

Em perfeita adequação aos princípios constitucionais da plena igualdade entre homens e mulheres e da proteção à criança e ao adolescente, o novo Código Civil baniu toda e qualquer prevalência feminina na atribuição da guarda, bem como eliminou o regime da perda da guarda pela culpa na separação judicial, estabelecendo a seguinte norma: "Decretada a separação judicial ou o divórcio, sem que haja entre as partes acordo quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la" (art. 1.584).

Na conformidade do novo Código Civil, ainda em adequação ao princípio constitucional da plena igualdade entre homens e mulheres, foi substituída a expressão "pátrio poder" por "poder familiar" em todos os dispositivos a este instituto referentes (arts. 1.630 e seguintes), estabelecendo-se que "durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade" (art. 1.631).

3) Direitos da personalidade: tutela no casamento
Para a preservação da dignidade é indispensável a proteção aos direitos da personalidade, que têm como objeto os atributos físicos e morais da pessoa em si e em suas projeções sociais, compondo-se de valores inatos, como a vida, a integridade física e psíquica, a liberdade, a honra, o nome.

Os direitos fundamentais, protegidos em nossa Constituição Federal (art. 5º), são, em princípio, os mesmos direitos da personalidade. A distinção reside no âmbito das relações em que são inseridos, respectivamente, de direito público e de direito privado (vide Carlos Alberto Bittar, "Os Direitos da Personalidade", 3ª edição, São Paulo: Forense Universitária, 1999, págs. 22 e 23).

O novo Código Civil, em sua Parte Geral, estabelece normas gerais sobre esses direitos, como convém sem maiores detalhamentos, que poderiam conduzir a um indevido engessamento de matéria de tamanha magnitude (arts. 11 a 21).

Nas relações familiares acentua-se a necessidade de tutela daqueles direitos, já que a família deve ser havida como centro de preservação da pessoa, da essência do ser humano, antes mesmo de ser tida como célula básica da sociedade.

É por meio do respeito a esses direitos que pode ser alcançada a harmonia nas relações familiares; somente diante do respeito a esses direitos é preservada a dignidade da pessoa no seio familiar.

O novo Código Civil estabelece, expressamente, como dever oriundo do casamento, o respeito e a consideração mútuos (art. 1.566, inciso V), que tem como objeto os direitos da personalidade do cônjuge e, na conformidade do Código Civil de 1916, resulta da interpretação do dever de mútua assistência (art. 231, inciso III; vide Regina Beatriz Tavares da Silva Papa dos Santos, "Dever de Assistência Imaterial entre Cônjuges", Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, pág. 104 a 111).

O nome, como direito da personalidade, opera a "ligação entre o indivíduo e a sociedade em geral", identificando a pessoa em suas relações profissionais e sociais (Carlos Alberto Bittar, "Os Direitos da Personalidade", obra citada, pág. 124).

Após a aquisição do sobrenome do cônjuge, sua perda, determinada na legislação divorcista, em caso de ser a mulher havida como culpada na ação de separação judicial ou de ser dela a iniciativa da ação de separação judicial baseada na separação de fato, sem qualquer exceção, fere o referido direito da personalidade (Lei nº 6.515/77, art. 17, caput e §1º).

O novo Código Civil, em atendimento ao princípio constitucional de proteção ao nome, estabelece que "o cônjuge declarado culpado na ação de separação judicial perde o direito de usar o nome do outro, desde que expressamente requerido pelo vencedor e se a alteração não acarretar: I - evidente prejuízo para sua identificação; II - manifesta distinção entre o seu nome de família e o dos filhos havidos da união dissolvida; III - dano grave reconhecido na decisão judicial. §1º O cônjuge inocente na ação de separação judicial poderá renunciar, a qualquer momento, ao direito de usar o nome do outro. §2º Nos demais casos caberá a opção pela conservação do nome de casado" (art. 1.578).

4) Considerações finais
Sem olvidar que as relações familiares têm conteúdo afetivo, é indispensável que o direito confira a devida proteção à família _núcleo essencial da nação_ e aos membros que a integram.

Nessa preservação exerce especial destaque a tutela à dignidade da pessoa em suas relações conjugais, com base na isonomia entre homens e mulheres e por meio do respeito recíproco aos direitos da personalidade.

Como dissemos no início, a preservação deste valor maior deve ocorrer não somente no curso, assim como no fim das relações conjugais, e, para tanto, é indispensável a aplicação dos princípios da responsabilidade civil, que conferem ao cônjuge lesado o direito à devida reparação dos danos morais e materiais decorrentes de ofensa a seus direitos da personalidade (vide Regina Beatriz Tavares da Silva Papa dos Santos, "Reparação civil na separação e no divórcio", obra citada, pág. 159 a 175). Tais princípios independem de previsão legal expressa no direito de família, por estarem contidos na Parte Geral do Código Civil (art. 159 do Código Civil de 1916 e art. 186 do novo Código Civil).

O livro do direito de família do novo Código Civil recebeu especial atenção da relatoria do projeto na Câmara dos Deputados, que ficou a cargo do deputado Ricardo Fiúza, quando tivemos a oportunidade de contribuir com sugestões legislativas, adotadas como disposições legais e algumas delas expostas neste artigo, sempre tendo em vista a preservação da dignidade das pessoas casadas.

REGINA BEATRIZ TAVARES DA SILVA é advogada, mestre e doutora em direito pela USP

Leia mais: no especial Código Civil
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página